domingo, 18 de dezembro de 2011

Futebol brasileiro...

Pouco depois do falecimento precoce de um de seus maiores ídolos, o Corinthians se sagrou campeão brasileiro pela quinta vez. Festas, povo nas ruas, atletas agradecendo a Deus, segunda-feira cheia de provocações contra os torcedores dos outros times, que, inegavelmente, torceram contra... Enfim, nada fora do normal. O que é fora do normal, ilegal, repugnante, é o próprio futebol brasileiro, que coroou mais uma vez a sua própria falta de caráter. Entre os próprios corintianos, há duas espécies muito bem definidas e, ainda que comportem subespécies, não consigo cogitar de exceção a elas. Quais sejam: a dos ludicamente ingênuos, que acham que o futebol brasileiro em geral e este título do Corinthians em particular é e foi definido dentro de campo, e os que coadunam com ilegalidades.

Antes que me deponham como um mau perdedor, vou enumerar alguns fatos do futebol brasileiro e mundial. No âmbito global, a toda-poderosa instituição governadora do esporte, a FIFA, apesar de há muito tempo se dispor de tecnologias interessantíssimas que poderiam auxiliar muito a arbitragem, a exemplo do que é feito com futebol americano, rugby e hóquei no gelo, por exemplo, é absolutamente intransigente quanto ao uso delas. Argumenta-se que deturparia o "espírito do jogo", seja lá o que for isso e sem entrar no debate da (i)legitimidade da FIFA ou de qualquer um de definir com preferência sobre os demais mortais o que vem a ser o espírito do jogo por amor à brevidade. De fato, pode até ser que o jogo perca um tipo de emoção instantânea se todo tento marcado puder ser revisto para sanar questões como se a bola entrou ou não ou, mais comum, se houve ou não impedimento no lance. Isto geraria situações de clímaxes e anticlímaxes (a marcação do gol, interrupção da partida e revogação do gol), bem como geraria comemorações menos espontâneas, pois o torcedor teria que esperar a confirmação do lance para soltar o grito da garganta. Tudo isso é verdade, mas eu entendo que se trata de um preço que deveria se estar disponível a pagar em nome da lisura do espetáculo. Tudo bem, futebol não é justiça, nem sempre o melhor time ganha, mas todo esporte é assim em maior ou menor nível e se o melhor time não ganhar, que seja porque não soube naquele momento aproveitar sua superioridade, não porque o time mais desfavorecido teve um lance ilegal a seu favor não percebido pela arbitragem. Ora, bem recentemente, houve um erro grotesco de arbitragem no meio de um jogo eliminatório da COPA DO MUNDO entre ALEMANHA E INGLATERRA (não Cambodja e Malásia, como se isso diminuísse o disparate!) em que uma bola chutada pela Inglaterra entrou mais de metro dentro do gol, a arbitragem não percebeu e o jogo continuou. Houve somente QUATRO pessoas em todo o mundo que não conseguiram ver a bola dentro do gol, mas as quatro calharam de ser o árbitro, os fiscais de linha e o quarto árbitro que oficiavam no jogo. A polêmica foi ensurdecedora, mas a FIFA manteve-se irredutível. Reiterou-se que o futebol association seria um esporte incompatível com esse tipo de auxílio externo, que é absolutamente impensável a revisão de uma decisão do árbitro a posteriori. Os alemães comemoraram, pois se sentiram vingados de 1966, quando, na final da Copa do Mundo disputada na Inglaterra, na prorrogação, os ingleses chutaram uma bola que bateu no travessão e pingou em cima da linha, mas a arbitragem, sob os minuciosos olhares de Sua Majestade, outorgou o gol à Inglaterra. De toda forma, a razão pela qual a FIFA não revê essa política vetusta obviamente não tem nada que ver com a manutenção das tradições futebolísticas, o que explicitarei mais adiante.

Venhamos para o Brasil. O futebol aqui é um meio semiprofissional e pseudoamador. Digo isso porque os jogadores são profissionais, mas os dirigentes, não. As equipes, com raríssimas exceções que surgiram há pouquíssimo tempo e restringem-se a times de ainda pequena expressão, são todas associações recreativas sem fins lucrativos cujos departamentos de futebol são profissionalizados. Assim, esses departamentos realizam uma atividade econômica e geram receita e lucro, que não são, em tese, repartidos a ninguém, mas sim reinvestidos dentro do próprio clube. Os dirigentes, que são os conselheiros e presidentes eleitos entre os sócios de cada clube, não recebem nem um centavo pelo exercício da sua função, que é de tempo integral. Teoricamente, eles não abandonam suas atividades usuais, de onde retirariam seu sustento, enquanto exercem cargos nos clubes, exatamente como ocorre em agremiações amadoras. É claro, óbvio, patente, ululante que isso não é verdade. Os dirigentes podem não receber nada do ponto de vista contábil dos clubes, ou seja, um salário ou participação nos lucros, mas retiram seu sustento da sua própria atividade como dirigentes.

E de onde que sai o dinheiro que os dirigentes recebem? A resposta a essa questão também explica toda a estruturação do futebol brasileiro enquanto negócio. Ao contrário do que se pode ingenuamente pensar, a receita primária do futebol brasileiro não é gerada dentro de campo. O principal produto do futebol brasileiro não é o futebol. É o agenciamento de jogadores e a negociação de patrocínios. Os dirigentes se esgoelam dentro dos seus clubes para chegar aos mais altos postos porque vislumbram os gordos lucros na comissão de vendas de jogadores e na assinatura de contratos de patrocínio. Não se precisa esforçar muito para concluir que esses proventos percebidos pelos dirigentes são ilícitos: a função do dirigente é administrar o clube, não agenciar jogador, de forma que somente o agente ou procurador ou empresário ou sei lá que nome se dê ao sujeito que realiza a atividade em princípio lícita de aproximar o atleta de um interessado nos seus serviços, fechar o negócio e elaborar o instrumento contratual é quem pode perceber essa comissão, a exemplo de um corretor de imóveis. O dirigente do clube participando das comissões equivale, na minha visão, ao prefeito de um município receber um valor por cada imóvel que é vendido dentro do seu território. Ou seja, ele não tem direito nenhum a receber qualquer valor de comissão pela venda de jogadores sob sua folha de pagamentos. Quanto aos contratos de patrocínio, mais grave ainda é a situação, pois os dirigentes realizam um verdadeiro achaque contra os patrocinadores. Entre os clubes de maior exposição na mídia, certamente há diversos empresários interessados em ter suas marcas divulgadas por eles. E seria novamente ingênuo pensar que os dirigentes escolhem o patrocinador com base na proposta mais vantajosa ao clube: eles escolherão o patrocinador que pagar a maior quota a eles, dirigentes. Eu acredito que este fenômeno seja razoavelmente institucionalizado até na Europa, embora mais em alguns países do que em outros. Na Itália isso deve ser quase tão endêmico quanto aqui - lembrar-se de que o homem forte do Milan, um dos maiores times do mundo, é ninguém menos que Silvio Berlusconi, nunca conhecido por sua retidão de caráter - na Inglaterra isso deve acontecer em uma escala não tão industrial e eu acho que somente na Alemanha isso não acontece. E não acontece na Alemanha e nem nas ligas profissionais norteamericanas porque - muito mais evidentemente nestas últimas - nesses dois lugares, a receita primária dos personagens investidores advém diretamente de dentro do campo e não de qualquer outro lugar.

Fica mais fácil ilustrar pelo fenômeno norteamericano. Lá, todas as equipes profissionais das ligas principais (NFL - futebol americano; NBA - basquete; MLB - beisebol; e NHL - hóquei no gelo) são corporações de estrutura jurídica comparável às S/As brasileiras, ou seja, empresas que visam o lucro com capital social aberto a qualquer investidor e cobradas por eles em razão de seus resultados financeiros. A única exceção é o Green Bay Packers, um dos mais tradicionais times de futebol americano, que são uma "corporação comunitária", também aberta a investimentos de seus sócios, mas que não reparte lucros, que são investidos integralmente no time. Eles não são uma agremiação recreativa com departamento de futebol americano profissionalizado, perceba-se; eles são um time de futebol americano e nada mais. Mas qualquer interessado - no caso deles, torcedor - pode se tornar sócio, investir no time e participar da tomada de decisões nos termos de seu estatuto, com o lucro sendo revertido integralmente ao próprio time. É um modelo não copiado lá porque não daria certo em nenhum outro lugar: a cidade de Green Bay tem menos habitantes do que cabem pessoas no estádio do time lá localizado (Lambeau Field) e o time goza de imensa popularidade em todos os EUA. São algo comparável, nesse aspecto, ao Clube de Regatas do Flamengo por aqui. Agora, se ainda resta alguma dúvida de onde o Green Bay Packers - e todos demais times profissionais daquele continente - retiram seu sustento, tenham este dado: o Green Bay Packers provavelmente trabalha sob a certeza de que terá todos os seus jogos em casa lotados por um período de tempo indefinido. Lá existe o season ticket, pelo qual o torcedor compra um ingresso válido pela temporada toda. Na prática, o sujeito acaba tendo uma espécie de cadeira cativa renovável todo ano, pois a partir do momento em que ele adquire o ingresso anual, ele paga os valores correspondentes e sabe que sentará sempre no mesmo lugar em todo jogo, tendo que renovar a opção a cada temporada que se inicia. O Lambeau Field tem pouco mais de 70.000 lugares, dos quais uns 75% devem ser destinados a season tickets - mais uma prova de que a receita primária dos clubes é o produto dentro de campo, pois os times precisam vender esses bilhetes para poder começar a lucrar. A cada ano, são devolvidos, por desinteresse do proprietário, 90 season tickets do Packers, em média. Assim, hoje, quem quiser comprar um season ticket dos Packers terá que comprar algum desses devolvidos. Ocorre que a fila de espera para a compra de season ticket dos Packers contém 86.000 (oitenta e seis mil nomes). Então, fica fácil de perceber que o tempo de espera é absolutamente indefinido e certamente superior à expectativa de vida de qualquer nacionalidade do mundo. Há, justamente, um mercado paralelo - legalizado - de lugares na lista de espera, de modo que há hoje disponível para compra lugares para exercer a opção de comprar o season ticket dentro de trinta anos e não é incomum quem tem lugar na fila incluir o seu lugar como um item de propriedade em seu testamento, para que seus herdeiros possam, eventualmente, comprar o bilhete.

Os Packers não são um caso isolado. No futebol americano, os New England Patriots - equipe talvez feita famosa no Brasil em razão de seu principal jogador, Tom Brady, ser o marido de Gisele Bündchen - têm situação semelhante. No hóquei no gelo, os Toronto Maple Leafs jogavam até 1999 num histórico ginásio chamado Maple Leaf Gardens, aberto na década de 30. De 1945 até o fechamento do ginásio não teve um jogo com um lugar sobrando sequer. Isso porque o time não ganha um campeonato desde 1967 e passou boa parte dos anos 70 e 80 sendo a piada da Liga, quando sequer alcançavam os playoffs. Ou seja, mesmo quando não havia mais chances matemáticas da equipe seguir adiante para a fase final do campeonato e ainda restassem "n" jogos para o final da temporada regular, ainda assim todo santo jogo o ginásio estava lotado! Isso tudo indica que o norteamericano talvez valorize mais o esporte que assiste do que propriamente a equipe pela qual torce, o que evidentemente não acontece aqui. Em segundo lugar, o produto oferecido é de qualidade: o torcedor tem várias opções rápidas, confortáveis e eficientes para chegar ao estádio ou ginásio; se for de carro, não trombará com nenhum flanelinha, vai deixar o carro num estacionamento bom e seguro e não correrá o risco de ser assaltado ou espancado nas imediações ou mesmo dentro do estádio. As facilidades são funcionais e confortáveis. Os banheiros, limpos. Os lanches, gostosos (e gordos). E os jogos não começam depois da novela das 9, de forma que o sujeito vai estar deitado e de banho tomado na cama dele no máximo às onze e meia da noite, não às duas da manhã, para trabalhar no dia seguinte.

A matemática, lá, então, é bastante simples: o lucro das empresas que exploram a atividade econômica esportiva vem da lotação das arquibancadas, portanto, do produto dentro de campo e das facilidades oferecidas ao expectador para que possa apreciá-lo. O gate paga as despesas da atividade e gera lucro, as demais atividades (venda de produtos licenciados, publicidade veiculada diretamente pelos jogadores) geram lucro adicional. Portanto, o empresário do ramo na América do Norte não tem interesse em vilipendiar o espetáculo, fazer esquema para esse ou para aquele time - os dirigentes não são torcedores bem relacionados, são investidores que estão ali para lucrar licitamente com o time - não porque sejam bonzinhos, mas porque é mau negócio. Eles criaram uma fórmula pela qual eles próprios têm todo o interesse do mundo na manutenção da lisura do meio.

E aqui?! Bom, agora eu volto a exemplificar pelo recente fenômeno do título corintiano. E dou mais alguns fatos. Há meros seis anos, o Corinthians comprou o título de campeão brasileiro de 2005. Não há outra palavra para descrever o que o time fez. Ele se aproveitou de uma situação de potencial risco da própria existência do campeonato, pagou quem tinha que pagar e levou o caneco. Recapitulando: no meio daquele campeonato, estourou o escândalo de arbitragem conhecido como caso Edílson. O árbitro Edílson Pereira de Carvalho admitiu que recebera dinheiro de mafiosos responsáveis por negócios ilegais de sites de apostas para influenciar nos resultados de diversas partidas que apitara. Não foram em todas as partidas que ele apitou no campeonato que ele fez isso, mas sim em algumas específicas, em que, em perspectiva, a atuação ilícita dele se fez evidente. Surgiu, então, uma questão sobre o que se fazer com essas partidas e com todas as outras que ele apitou. Cogitou-se (1) anular as partidas em que ele admitidamente influenciou; (2) anular todas as partidas que ele apitou; e (3) anular o campeonato inteiro e fazer uma investigação completa desse e de quaisquer outros casos análogos. Para mim, o mais correto seria tomar a última medida, mas, enquanto o debate ainda fervia e não se tinha consenso algum, fosse na imprensa, fosse entre os times, o Superior Tribunal de Justiça Desportiva, na pessoa de seu então presidente, Luiz Zveiter, anulou sumariamente todas as partidas que o árbitro Edílson apitara e determinou que elas todas fossem jogadas novamente. O mesmo Zveiter que é desembargador do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro que recentemente voltou aos holofotes por indeferir proteção policial à eventualmente assassinada juíza Patrícia Acioli e envolvido em contundentes denúncias de corrupção. Enfim, todos os microfones voltaram-se a ele naquela época, que não deu maiores explicações. Afirmou que estava decidido desta forma e que o importante então era continuar o campeonato. Foi o que CBF rapidamente providenciou, para que o escândalo fosse abafado ou esquecido pelo decurso do tempo, para além daquele momento agudo de comoção popular. Agora, na tabela de pontuação do campeonato, havia UMA equipe que seria claramente beneficiada, mais do que qualquer outra, por esta medida. A equipe: Sport Clube Corinthians Paulista. Embora o Edílson tivesse afirmado que não influenciou em quase nenhuma - senão em nenhuma, minha memória me trai um pouco - partida do Corinthians que apitara - e sem desconsiderar que a credibilidade do Edílson era próxima de inexistente - e tampouco houvesse evidências de manipulação do resultado de poucas ou nenhuma delas, o Corinthians teve a chance de redisputar mais partidas que perdera do que qualquer outra equipe atingida pelo replay dos jogos. Ora, é evidente que o Corinthians entrou em todas essas partidas com uma vantagem psicológica imensa, pois não tinha nada a perder. As equipes que haviam ganhado dele as partidas originais eram terceiros de boa-fé, mesmo na hipótese das partidas terem sido influenciadas pelo árbitro, porque ficou comprovado que as equipes não tinham conhecimento do esquema, era algo externo a elas e à própria CBF. Pois não foi nenhuma surpresa quando o Corinthians recuperou a maior parte dos pontos perdidos nessas partidas. Para piorar, e ao mesmo tempo comprovar o favorecimento escuso ao Corinthians, num jogo realizado no Estádio do Pacaembu contra o Internacional de Porto Alegre, que se tornou a única equipe capaz de evitar o título corintiano, o atacante Tinga do Internacional sofreu um pênalti clamoroso do goleiro do Corinthians, Fábio Costa. O árbitro naquela tarde, Márcio Rezende de Freitas, que por si e equipe já havia decidido um campeonato brasileiro dez anos antes em favor do Botafogo de Futebol e Regatas do Rio de Janeiro, correu em direção ao lance e todos esperavam que fosse marcar o pênalti. Não. Advertiu Tinga por simulação e, como ele já tinha um cartão amarelo, foi expulso de jogo. Eu estava assistindo esse jogo. Os comentaristas ficaram mudos, mesmo os da Globo. Talvez se o árbitro não tivesse expulsado o atleta que sofreu o pênalti teria ficado um pouco menos evidente, mas a coisa foi tão gritante que o árbitro "decidiu" encerrar sua carreira e admitir que cometera um erro no lance. Tudo para dar a impressão de que não se tratava de um mero equívoco de arbitragem, tão festejado pelas tradições do futebol tão caras à FIFA, que as prefere ao invés da redução de possibilidade de erro - ou manipulação - da arbitragem. Fosse como fosse, o Corinthians era campeão brasileiro.

Este episódio acabou ali, mas teve um prólogo. O presidente do Corinthians à época, Alberto Dualib, estava envolto em mil e uma denúncias de corrupção e sua cabeça estava a prêmio. Era investigado pela Polícia Federal juntamente com os parceiros estrangeiros e pra lá de questionáveis do Corinthians, representados por um tal de Kia Joorabchian, um testa-de-ferro de quinta categoria do mafioso russo Roman Abramovich, que então havia recentemente comprado o Chelsea Football Club de Londres. Pois tempos depois, veio à tona uma gravação de conversa telefônica obtida de Dualib, autorizada pela Justiça, em que ele admitiu - é verdade, reservadamente - que o título de 2005 do Corinthians fora "roubado", textuais palavras. Quando esta conversa privada veio à tona, nem ela e nem seu conteúdo foram frontalmente contestados por Dualib, como se precisasse. Assim, sacramentado ficou que o Campeonato Brasileiro de 2005 foi surrupiado pelo Corinthians.

Eis que mais ou menos na mesma época, o Brasil era escolhido como sede da Copa do Mundo de 2014. Os artífices desta façanha foram Joseph Blatter, presidente da FIFA, e Ricardo Teixeira, presidente da CBF. Ambos apadrinhados políticos de João Havelange, homem forte do futebol mundial que comandou a FIFA por décadas a mão de ferro. Proporcionou um crescimento sem precedentes à entidade e ao esporte que ela governa, é verdade, mas não sem polêmicas e associações mal explicadas, conforme largamente documentado pela imprensa ao longo dos anos. Eu me recordo de uma cena de pouco tempo depois da eleição de Blatter para a presidência da FIFA, quando o Havelange foi participar de uma reunião, e foi cumprimentado por Blatter num estilo parecido com o que os convidados cumprimentavam Don Corleone na primeira cena do Poderoso Chefão. O que, por sua vez, deve ser parecido com o cumprimento destinado aos chefões da N'Drangheta... Enfim, e Teixeira, genro de Havelange, tem uma "folha de serviços" há muito e muito conhecida. São gângsteres, na concepção popular do termo. Em todo o caso, anuncia-se a Copa e começa-se a planejar a infraestrutura necessária para recepcioná-la. Quanto aos estádios que seria necessário construir ou reformar, as promessas iniciais foram de praxe, ou seja, que não haveria dinheiro público envolvido. Mais ou menos iguais às promessas de inauguração de estradas, aquele discurso absolutamente irreal e populista de última categoria "não haverá cobrança de pedágio", como se houvesse outra forma de custear diretamente a manutenção de uma rodovia. Mas, voltando, São Paulo, principal cidade do País, aliás, principal cidade das Américas ao sul da fronteira México - Estados Unidos, era uma óbvia sede. Quanto a estádios, sem mencionar a Rua Javari e o Nicolau Alayon - menção honrosa ao Canindé - poder-se-ia cogitar do Pacaembu, do Palestra Itália e do Morumbi. O Pacaembu não comporta grande público e é tombado, de modo que não poderia sofrer radicais reformas, necessárias para que se tornasse apto a sediar jogos da Copa do Mundo. O Palestra Itália virou um canteiro de obras e vai se tornar a Arena Palestra Itália provavelmente a tempo do torneio, mas não terá capacidade para sediar o jogo de abertura, que era o plano para São Paulo. Sobrou o Morumbi, uma escolha, aliás, óbvia. O estádio está localizado numa zona nobre, a poucos minutos de três dos maiores e melhores shopping centers da cidade, a um do melhor hospital e com projeto de expansão das linhas de Metrô em que uma estação seria e será instalada nas proximidades do estádio. Além disso, apesar de precisar de diversas intervenções estruturais, o estádio não teria que ser posto abaixo e todo o financiamento viria de recursos privados. Porém, isso não estava nos planos nem nos interesses de todos os altos personagens envolvidos. Como levar a protocolar e gorda comissão por fora sem a utilização de verba pública? E em larga escala?

A pauta, então, volta ao Corinthians. Sucedeu Dualib um cidadão que atende pelo nome de Andrés Sanchez, fundador e antigo presidente de uma torcida organizada do clube denominada Pavilhão Nove, em alusão ao pavilhão homônimo da antiga Casa de Detenção de São Paulo. Aqui eu já vou me dar licença para fazer um comentário muito pouco politicamente correto: torcidas organizadas de clubes de futebol são quadrilhas de arruaceiros. Elas extorquem os clubes por ingressos mais baratos, intimidam torcedores comuns do próprio time nos jogos e têm por objetivo quase sempre declarado a aniquilação de facções rivais. E um ser humano desses chega à presidência de um dos maiores clubes do País e começa a se amigar de Ricardo Teixeira e patota. Como bom torcedor fanático que nunca deixou de ser, se preocupa com os rivais talvez mais com que o clube que torce. Se dependesse dele, nenhum dos rivais existiria, especialmente o São Paulo. Assim, aproveitou que o São Paulo nunca esteve politicamente alinhado com a CBF e se tornou dela e de seu mandatário um aliado incondicional. Pois bem, essa aliança culminou com o descredenciamento do Morumbi como sede da Copa do Mundo e a FIFA transferindo esse status ao estádio do Corinthians. Mas, que estádio?! Um estádio que não existia nem no papel até então. Não havia nem projeto. Só havia o local, um terreno da Prefeitura cedido ao clube no bairro de Itaquera para a construção de um estádio décadas atrás, que nunca havia se logrado construir. Essa inércia tecnicamente falando deveria ter determinado a reversão do terreno à Prefeitura, mas isso nunca ocorreu e certamente não ocorreria agora. Itaquera, um bairro de acesso viário insuficiente para um evento desse porte, longe dos centros comerciais notáveis da cidade, longe dos melhores hospitais, longe dos hoteis e perigoso para forasteiros mesmo de dentro de São Paulo uma vez que cai a noite. Quanto ao financiamento da construção, novamente obedeceu-se o velho roteiro: primeiro, não haveria um tijolo comprado com dinheiro público. Depois, o Poder Público interviria para instalar as cadeiras provisórias para atingir a capacidade mínima exigida pela FIFA para sediar a abertura da Copa. Agora já se admite um financiamento público mais vultoso e todo mundo sabe onde essa história vai acabar, não haverá, na verdade, um centavo de dinheiro privado no bendito estádio. Ora, já vi corintianos se defendendo, e o que fez o São Paulo com o Morumbi?! O Laudo Natel era governador do Estado ao mesmo tempo em que era presidente do clube! Como é que vocês querem convencer de que não apareceu dinheiro público na construção do Morumbi?! Isso tudo tem fundamento. É bastante provável, melhor, é quase impossível que não tenha havido também naquela ocasião uma ilegal utilização de verbas públicas e enriquecimento criminoso de diversos personagens. Contudo, quer-se realmente propor como solução contra o disparate que muito provavelmente o São Paulo cometeu outorgar o mesmo "direito" ao Corinthians? Quer dizer que se o meu vizinho vier me matar, ao invés de prenderem o cara, o correto é o Estado dar uma arma na mão da minha mulher e falar "toma, pode matar o cara à vontade"? Esse argumento é tão risível quanto nojento, mas não vou me alongar - já me alonguei, mas não é a intenção esgotar este assunto incidental.

O que eu quero aqui é falar da pouca-vergonha que se tornou o futebol dentro de campo, também. A Seleção Brasileira perdeu as duas últimas Copas do Mundo de maneira bizarra, especialmente 2006. O futebol que antes entrava em campo com obrigação de vencer e convencer agora virou um time comum, que entra em campo pensando "vamos lá ver o que a gente pode fazer". Ficaria difícil fazer o povão fechar os olhos à roubalheira que certamente já está sendo feita para sediar a Copa se o mesmo povão não estivesse completamente absorto com a Seleção e a própria Copa. E que maneira melhor de fazer isso que não com os times mais populares do País na crista da onda?

Dentro de campo, o futebol do Rio de Janeiro é sofrível faz tempo. Mas a CBF é do Rio. Tira de lá boa parte de sua base de sustentação política. Não é interessante para ela que os times do Rio vão mal. Pois em 2009, após uma sequência de três títulos nacionais do São Paulo, o Flamengo foi campeão e o Fluminense foi salvo do rebaixamento por vigarices indisfarçáveis dentro de campo. Principalmente num jogo contra o Palmeiras, apitado por Carlos Eugênio Simon, cidadão que particularmente nunca me enganou. Ele anulou um gol absolutamente incontestável do Palmeiras num momento capital do jogo, que o Fluminense depois acabou ganhando. Em 2010, o próprio Fluminense foi campeão. Neste ano, as arbitragens foram ridiculamente favoráveis ao Flamengo, que não conseguiu aproveitar as chances ao seu favor, porque o time era muito medíocre. Plano B: Corinthians. Após um rebaixamento-punição à Série B, por ter se associado a gângsteres outros qu não a própria CBF, sem o beneplácito dela e sem repartir a pilhagem com ela, voltou à Série A com força total e para os braços abertos da entidade. Não vou falar do campeonato todo, mas focarei nas duas últimas rodadas. O Vasco da Gama era o único time com chances de tirar o título do Corinthians. O Vasco foi assaltado dentro de campo no jogo contra o Botafogo, um de seus maiores rivais, para evitar que a decisão do título ao Corinthians fosse adiada para o último jogo, contra o SEU maior rival, Palmeiras. O Corinthians ganhou do Figueirense - sim, enquanto o Vasco terminava o campeonato com dois clássicos, o último deles, contra o Flamengo, seu maior rival, o Corinthians jogava com o Figueirense antes de finalizar sua participação - mas o Vasco perseverou e também ganhou, levando a decisão para o último jogo.

Em Vasco e Flamengo, um pênalti clamoroso não é assinalado para o Vasco quando o jogo ainda estava 0 x 0. Em Corinthians e Palmeiras, o Corinthians precisava apenas empatar e jogou o primeiro tempo inteiro morrendo de medo de levar gol. E o Palmeiras buscou o jogo o tempo todo. No segundo tempo, poucos minutos se passam até que num lance absolutamente normal, que, na minha ótica, nem falta foi, o juiz expulsa Valdivia, principal jogador do Palmeiras, que nem tinha cartão amarelo. Para "compensar", ou melhor, tentar fazer parecer que não estava favorecendo o Corinthians, expulsou um zé-ninguém perna-de-pau do Corinthians.

O resultado, todos sabem. As conclusões são as seguintes: sendo muito politicamente correto, digamos que o futebol brasileiro não merece o benefício da dúvida desde pelo menos 2005. Na verdade, e os bons modos hipócritas que vão às favas, o futebol está comprado pelo menos desde 2005. A FIFA não tem interesse em introduzir as tecnologias que citei pois elas praticamente inviabilizariam a manipulação de jogos e da arbitragem, quando lhe conviesse. Há dois tipos de torcedores "beneficiados" por essa situação: os ingênuos e os que coadunam com as falcatruas. Entre esses, há os que se conformam com as ilegalidades, especialmente com o Brasil, terra da malandragem "aqui é tudo assim, mesmo, dane-se, todo mundo rouba. Espero que o meu time ganhe no final das contas, de qualquer jeito" e há os que acham certo ganhar dessa forma. Eu não tenho dados empíricos que comprovem que os corintianos são mais afetos a isto do que outros tipos de torcedores, embora eles ocupem as prisões paulistas numa proporção assombrosamente maior do que aquela em que eles são a maioria na população comum. E os demais times, se estivessem na mesma posição política junto à CBF que o Corinthians está hoje, provavelmente fariam a mesma coisa. Então, meu amigo, se você comemora resultados positivos no futebol brasileiro e, especialmente hoje, se você é um corintiano feliz e satisfeito, você é ou otário ou bandido. Se não é nem um nem outro, deveria estar com vergonha.

Já eu, torço que nem um maluco que estoure algum escândalo gigantesco, enlamaçado e indisfarçável pouco antes de 2014 - que haverá, haverá, é só questão de alguém ter coragem de investigar e divulgar - e a FIFA, para não cair em (total) descrédito, faça com o Brasil o que fez com a Colômbia em 86 e mande a Copa para o Canadá ou os Estados Unidos, ambos países capazes de receber a Copa com louvor amanhã, se for necessário.

quarta-feira, 7 de dezembro de 2011

Frase do dia

Almocei com um bom amigo hoje que fazia tempo que não via. Foi muito agradável, mas ao final do cafezinho, que nós tomávamos na empresa dele, sob o abrigo do teto da oficina dele, portanto, começou a cair uma senhora chuva de verão. Ele não ia mais sair à rua, estava entregue e coberto, mas eu ainda precisava caminhar até o meu carro, que estava umas três quadras dali, e eu obviamente estava sem guarda-chuva. Aliás, isto merecerá um dia um tópico específico, mas desde já guardem que eu ODEIO guarda-chuvas, o porquê eu explicarei no referido tópico.

Informado espectador do programa Mythbusters que sou, sabia que pouco importava eu sair correndo ou ir andando em velocidade normal; chegaria ao carro molhado como um pinto de um modo ou de outro, porque a distância até o veículo era muito grande. Entre chegar molhado arriscando tropeçar e cair no meio da rua e chegar igualmente molhado sem correr este risco, preferi a segunda alternativa e pouco me importei com os olhares incompreensivos de quem cruzava comigo e não entendia porque eu, de terno, não saía correndo para preservar os meu supostamente caros panos. Bando de idiotas.

Enfim, chegando de volta ao meu escritório, enviei um email ao meu amigo simplesmente dizendo "estou um PINTO!", ao que ele respondeu com a protocolar fileira de letras "k" e a afirmação de que não resistia em rir da desgraça alheia.

O que me traz à frase do dia. Jesus Cristo no Getsêmani pouco antes de ser arrebatado pelos romanos, o que ele sabia e consabia que ia acontecer, enquanto chorava e suava sangue, deve, em algum momento, ter olhado para cima e gritado:

"PORRA! Por que eu só me fodo e todo mundo racha o bico?! PUTA QUE O PARIU!"

terça-feira, 6 de dezembro de 2011

Frases que não foram para o texto final da Bíblia Sagrada

Tem gente que se diverte muito comigo quando eu falo essas coisas e alguns desses sugeriram que eu começasse a colocá-las no papel. Então, assim farei. Quem sabe a uma razão diária ou sempre que houver ensejo para alguma delas no meu cotidiano, postarei aqui alguma frase, diálogo, interjeição ou episódio que os editores da Bíblia Sagrada - quem quer que eles tenham sido, ou os editores de qualquer outro texto sagrado - resolveram suprimir do texto final. São passagens que, se os personagens bíblicos efetivamente existiram - e eu não vou entrar, ao menos agora, no debate teológico se eles existiram ou não, se Deus existe ou não, etc., etc. - eu darei minha interpretação de como realmente ocorreram, sem a liricização canonizante própria dos textos religiosos.

Bom, dito isso, olhando pela janela e contemplando o dilúvio que se avizinha, ocorre-me Noé, voltando-se para a sua esposa dentro da já concluída Arca:

"CARALHO, hein, mas eu não falei pra você que ia chover pra caralho?!"

quarta-feira, 30 de novembro de 2011

Ele

Vertendo para temas mais amenos, segue uma crônica que escrevi num raro momento de tempo livre tempos atrás.

Entrando no carro após um extenuante dia de trabalho, pensando em quão atribulado estava, ocorreu-me que o Brasil ainda é uma sociedade consideravelmente machista. E homofóbica. Eu explico.

Muito da cultura de um determinado grupo de pessoas, de uma comunidade ou mesmo de um país pode ser percebido pelas gírias utilizadas por eles. E então lembro que em qualquer papo normal tupiniquim, se alguém de repente solta que seu chefe está introduzindo à força uma série de objetos em seu mais notório e nauseabundo orifício, os interlocutores nem por um segundo interpretarão que aquele a quem o devassado se reporta está efetivamente empreendendo uma agressão sexual ao seu subordinado. A sodomia involuntária praticada pelo superior hierárquico simboliza, entre nós, brasileiros, uma extraordinária carga de trabalho. Ao leitor certamente ocorrerá uma série de expressões, trocadilhos, interjeições diferentes para ilustrar a máxima, sempre ressaltando o caráter não consentido do afrouxamento do mais festejado esfíncter do nobre trabalhador. Isso demonstra que trabalho duro é popularmente visto como um estorvo e que pior humilhação não há do que de uma forma ou de outra permitir que qualquer coisa, um espécime de genitália masculina ou um brinquedo, um utensílio de faxina, leguminosas, mobília ou até galináceos, seja estufada reto acima.

Pois é. A esta altura, eu já estava a caminho de casa, uma chuva torrencial, um trânsito dos infernos, e de algum modo tudo isso auxiliava minha mente a seguir neste importante raciocínio. Enfim, dada toda a conotação sexual, pensei por que cargas d'água quando se descreve que um homem praticou conjunção carnal, diz-se que ele tomou fulana de tal como refeição e quando esta felizarda é que é o objeto da ação, que ela se desfez de sua perseguida cavidade? Isto não faz sentido nenhum! Nenhuma das duas expressões, na verdade, mas a última me parece mais estapafúrdia. Como raios uma normal função fisiológica que não envolve disposição de bem algum veio a ser descrita como uma alienação definitiva da aconchegante caverna feminina, puerilmente denominada por uma simpática ave verde? Um bom amigo resolveu passar a falar em emprestar a dita cuja, anedota que até prefiro, embora nunca tivesse visualizado o ato sexual como algo parecido a um mútuo bancário. Não obstante, o comodato, que reclama ao menos uma expectativa de devolução, soa menos absurdo.

Intrigante. Tanto quanto que a mesma expressão designa a conjunção carnal do ponto de vista feminino e o ato homossexual masculino, mas agora em atenção a ele, o canal naturalmente desenhado para movimentos em vetor inverso tão agredido quando do crescimento da demanda laboral. E esta é realmente uma bela duma confusão. Se os homossexuais masculinos só querem, só pensam em entregar com animus definitivo o encouraçado de descarga, como é que eles conseguem fazer sexo? Como minha curiosidade não chega a tanto, detive respeitosamente minha imaginação, mas consegui concluir que essas gírias indicam que tanto a mulher quanto os homossexuais masculinos são sexualmente mal falados.

As mulheres DÃO. Os homossexuais DÃO. Quem come parece que tomou vantagem de um ou da outra. Os atos não são caracterizados como bilaterais. A mulher e o homossexual não passam de otários e os únicos que aproveitam o ato sexual são os que comem. E o melhor de todos é o chefe, que não só come como enfia um monte de coisa no receptáculo alheio. O cool é ser homem e chefe, o resto, literalmente ou não, só se fode.

E eu já vou sendo traído pela minha própria propensão a essas gírias... Mas a minha conclusão permanece. A hierarquia sexual, ou melhor, a cadeia alimentar brasileira começa com o subordinado – que leva de qualquer jeito, quer queira quer não, a qualquer hora – e prossegue com o homossexual, a mulher, o homem e, no topo o chefe. Gostaria que um perturbado antropólogo desenvolvesse uma tese para explicar tudo isso, porque uma explicação certamente há, mas eu não tenho formação para formulá-la.

Até lá, é melhor eu chegar rápido em casa, senão minha mulher vai comer meu cu.

terça-feira, 29 de novembro de 2011

O conteúdo de minha fossa sanitária

Ontem, minha esposa voltou do trabalho e contou que uma colega havia recentemente adotado uma cadela. Ela já estava procurando um cachorro nos diversos sites das diversas ONGs de protetores de animais quando viu um anúncio que a interessou. Era uma cachorra bonita, aparentemente mista de Labrador, cujos donos diziam que iam se mudar e que não poderiam mais ficar com ela, ou coisa assim.

Como comumente acontece com quem gosta de animais, foi uma clássica história de amor à primeira vista, a colega da minha esposa foi conhecer a cachorra e aflorou-se um carinho mútuo entre as duas. Não pensou duas vezes e a trouxe para casa. A cachorra está se adaptando muito bem, mas a adotante percebeu que ela era um pouco arredia ao contato com outras pessoas. Eis que, ao levá-la ao veterinário para a primeira consulta, foram constatados sinais de abuso físico e, pior, a cachorra esteve prenha e havia sido injetada nela uma substância abortiva, letal para os fetos. De fato, os cachorrinhos em seu útero estavam mortos e uma cirurgia de emergência salvou também a cachorra, que estava prestes a ter o mesmo destino de sua cria.

Nós mesmos temos duas cachorras. A primeira havia sido abandonada por seus antigos donos na rua muito provavelmente quando eles se deram conta de que a cachorra estava prenha. Ora, se deixavam a cachorra solta na rua, era evidente que ela teria contato com outros cachorros que buscariam cruzar com ela quando ela tivesse um cio. Neste caso, deveriam tê-la castrado. De toda a forma, ela foi encontrada por uma protetora de animais num bueiro dando de alimentar à sua recém-parida cria de dez filhotes. Nove sobreviveram. A protetora deu abrigo à mãe e aos filhotes e foi doando os filhotes. Quando a conhecemos, haviam sobrado apenas duas fêmeas de toda a cria, já grandes, com seis meses. Vira-latonas, mãe e filhas. Fomos lá supostamente para pegar uma das filhotes, mas gostamos muito da mãe, embora já fosse adulta. Nós a levamos no dia seguinte e é o melhor cachorro que tanto eu quanto minha esposa já tivemos. Obediente, esperta, amorosa e tranquila, e ainda dá sinal sempre que alguém estranho chega perto de casa. A outra cachorra nós encontramos abandonada na rua ainda filhote. Esta é uma cachorra mais clássica, chegou em casa e fez buracos no jardim, come pedra, come pano, mata ratos-do-mato, enfim, uma doida varrida. Mas é outro animal muito carinhoso que não merecia e certamente não deu motivo nenhum para ser abandonada ao lado de uma pista de rodagem em altas velocidades para morrer do jeito que foi.

E então eu me ponho a pensar: que espécie de ser humano comete uma atrocidade dessas contra um animal indefeso? Sim, indefeso, pois os mecanismos de defesa de todos os seres vivos que existem na face da Terra que não o humano pressupõem ataques de um potencial predador ou concorrente em relação a suprimento de comida, não à mente distorcida e malévola de um homem portador de absoluto livre arbítrio. Ou seja, o animal abusado, em primeiro lugar, não tem e nem pode vir a ter consciência do porquê de estar sendo maltratado. Mais, a cadela prenha, ao contrário da filha adolescente rebelde e desobediente que engravida do namoradinho, não faz a menor ideia do que seja planejamento familiar e nem saiu escondida de seus donos para se divertir. Ela simplesmente deu vazão a um instinto de sobrevivência e perpetuação da espécie dela, de forma totalmente involuntária. E já que falamos em vontade consciente e livre arbítrio, chegamos à óbvia conclusão de que o cachorro não tem nenhuma das duas. Os animais não têm maldade; se fazem mal a algo ou a alguém, o fazem única e exclusivamente para se defender de uma situação que o intelecto rudimentar deles interpreta como sendo de perigo, exista esse perigo ou não. Portanto, não existe nenhuma justificativa nem explicação minimamente plausível para quem comete qualquer tipo de abuso com animal. Pode ser um abuso efetivo ou abandono. Os animais domésticos evoluíram para confiar e precisar da presença humana, então eles buscam, sim, apoio e amparo nas pessoas que os guarnecem e não entendem o motivo quando são abandonados. O sofrimento que eles devem experimentar quando fazem isso com eles deve ser indescritível, pois.

O animal é inconveniente na sua casa? Deveria ter pensado melhor antes de trazê-lo para dentro. Ele não pediu para ser adotado por você tanto quanto nem eu nem você pedimos aos nossos respectivos pais para nascer. O cachorro te mordeu ou o gato te arranhou? Por algum motivo, os dois se sentiram ameaçados por algo que você fez e nenhum dos dois tem a consciência real ou potencial de entender que você não representava nenhuma ameaça. O cachorro ou o gato não são uma pessoa que quis te ofender e resolveu te agredir. Eles só estavam se defendendo.

Cumpro, afinal, explicar o título desta postagem: ele me vale muitíssimo mais do que a vida dos seres humanos que abusam dos animais.

domingo, 30 de outubro de 2011

Polícia Militar na USP e política antidrogas

Sem considerar o eventual uso de força excessiva pela Polícia Militar, a repressão institucional do uso de maconha foi legítima, não porque seja correto combatê-la, mas simplesmente porque, gostem os defensores da liberação ou não, seu uso hoje, ainda, é crime.

Em princípio, eu defendo a descriminalização de TODAS as drogas. Da aspirina à heroína. Querendo dizer que devem ser revogadas tanto as proibições como os controles de uso de determinadas substâncias. No último caso, a referência é aos remédios tarja preta e mesmo os de tarja vermelha que não possam ser vendidos sem receita médica. Devo admitir que não possuo o gabarito técnico clínico nem de criminologia para afirmar a efetividade desta tese libertária, mas entendo que não é lícito ao governo determinar o que cada cidadão deve fazer com sua vida particular. Se o indivíduo quer fumar cinco maços de cigarro por dia, beber um litro de cachaça, tomar pico, cheirar pó, queimar mato e, depois disso tudo, se matar, e fizer tudo isso dentro da casa dele, o problema é única e exclusivamente DELE. Sem dúvida que são atitudes extremamente prejudiciais a quem resolver empreendê-las, mas admitir que o governo pode impedi-las, à revelia do sujeito que quer tomá-las, significa também admitir que o governo pode estabelecer um conceito geral de felicidade e impô-lo a todos os seus súditos. E isso é muito perigoso. Se hoje o governo pode entrar na minha casa e falar que dentro dela, sem incomodar absolutamente ninguém, eu não posso fumar isso, beber aquilo ou cheirar e inejtar aquilo outro, por melhores que possam ser as intenções por trás dessa política, ela pertence à mesma categoria - imposição de um conceito de certo e errado relativo a uma conduta absolutamente privada - que uma norma que determinasse que eu tenho que torcer para o Corinthians, para o São Paulo, ou para o Nacional da Comendador Souza pertenceria. Ninguém tem nada com isso, e o governo, menos ainda. Sem embargo, repito que não sei as implicações clínicas ou criminológicas que essa liberação teria. Mas acho que o consumo de drogas não aumentaria; eu não injeto heroína porque é ilegal, mas porque sei que isso me faria muito mal, seria potencialmente suicídio.

Ainda nesta pauta, dirão os detratores que a liberação das drogas causaria um enorme problema de saúde pública, pois os atendimentos por conta do abuso delas aumentaria. Pois eu reafirmo que o que cada um faz com sua vida é problema exclusivamente seu, mas exclusivamente seu, mesmo: o cidadão teve uma overdose de cocaína? Foi levado às pressas para o hospital público, ficou dias na UTI e teve sua vida salva? Ótimo, então, ele que pague a conta. Nada de SUS para aliviar a bronca dele. Vai pagar os custos de combustível e desgaste da ambulância, a hora trabalhada do atendente da ligação para o 193, do motorista da ambulância, dos paramédicos, dos enfermeiros, os honorários dos médicos que o atenderam e os custos de internação e e de medicação. É alcoólatra e precisa de clínica de reabilitação? Vai sair do bolso dele. O sujeito que reclama a sua liberdade de se drogar não pode pedir o tratamento gratuito das consequências que isso lhe trouxer. Logo, a política antidrogas não é, no frigir dos ovos, uma política de saúde pública, ou pelo menos não precisaria ser.

Porém, voltando ao assunto de face desta crônica, fato é que hoje o uso de maconha e de tantas outras drogas ainda é considerado crime. Uma conduta que talvez - e eu defendo isso, como exposto acima - não deveria ser catalogada como crime, mas é. Assim, reprimi-la não é uma faculdade, mas um dever do Estado, representado, no recente episódio da USP, pela Polícia Militar.

Tudo o que eu disse até agora parece uma contradição em termos. Se não é adequado ao Estado criminalizar o uso de drogas, porque a polícia deveria reprimir este crime, se ele ainda está vigente nos livros da lei? Por que não simplesmente esquecê-lo enquanto crime, que é o que parece que essa moçada da USP defende? E a resposta - esta eu tenho formação e gabarito técnico para fornecer - é bastante simples: ainda que o Direito seja uma ciência humana, o ramo do direito penal, especificamente falando a tipificação penal, é cartesiano, e tem que ser, pois o cidadão comum tem que poder abrir o Código Penal, ler lá a perfeita descrição de uma conduta e ser capaz de entender que se ele a praticar, terá cometido um crime e responderá por isso. O critério que define algo como sendo um crime é, portanto, absolutamente objetivo, não demanda interpretação. Assim, pretender que o Estado feche os olhos a um determinado crime significa impor um conceito subjetivo para aplicar uma lei objetiva, e isso é MUITO perigoso! Eu espero que para o leitor isso já esteja parecendo óbvio, pois subjetivizar a aplicação da lei significa admitir que não o Estado enquanto instituição, mas sim que quem está ali momentaneamente exercendo as funções do Estado é que tem a prerrogativa de determinar o que será investigado e o que não será, quem será processado e quem não será. E a lei terá se tornado letra morta. É importante perceber que a lei é uma proteção do cidadão perante o Estado, bem como contra os criminosos responsáveis por crimes que efetivamente lesam terceiros, cidadãos de bem. Ora, se o Estado somente perseguir os crimes que quiser, que garantia se terá que amanhã os agentes estatais não resolverão internamente que homicídio é um crime "bunda-mole" e, então, meu vizinho maluco, que não vai com a minha cara, não vai entrar na minha casa e cortar minha garganta?

Portanto, o discurso desses estudantes da USP de que a Polícia Militar não tem nada que punir o uso de maconha na USP ou em qualquer lugar é ou ingênuo ou mal intencionado. Será ingênuo se eles de fato acham que deixar de reprimir um crime inutilmente definido como crime contribui para a melhoria da segurança pública e da autonomia universitária, o que quer que ela seja, tão cara para eles. Será mal intencionado se eles simplesmente querem praticar o crime de opção deles em paz. Dizer "eu quero ter o direito de fumar maconha" é uma reivindicação como outra qualquer, legitimada pela liberdade de expressão. Dizer "eu TENHO o direito de usar maconha" é uma mentira. Independentemente dos argumentos, usar maconha ainda é crime e, enquanto for, o Estado tem que reprimir, não porque se atingirá um nobre e prático objetivo ao fazê-lo, mas apenas porque é crime e todo crime tem que ser reprimido, ou então se permitirá que o fulaninho que estiver ali brandindo o porrete estatal reprima uns crimes e uns supostos criminosos e deixe algumas condutas e praticante delas a que for simpático por qualquer motivo fiquem livres. E isso é inadmissível num Estado que se pretenda democrático.

domingo, 2 de outubro de 2011

Boa malandragem x má malandragem

Minha esposa está ao meu lado se entretendo com um jogo de futebol americano. Ela teve a atenção chamada para o esporte inicialmente pela beleza dos uniformes e passou a apreciar o jogo em si. Eu acho o esporte interessante e entendo de sua mecânica e regras mais do que o acompanho, mas, pensando nas suas origens e fazendo um paralelo com o futebol association, que é o nome oficial do esporte mais popular do mundo e objeto da demência da maior parte dos brasileiros, lembrei-me do rugby, do seu efetivo apego pelo fair play e pela absoluta falta de ética que tem caracterizado o futebol, sobretudo no Brasil, na minha opinião.

O futebol americano é uma adaptação declarada do rugby e o rugby, uma dissidência do futebol. Naquela época, o jogo ainda não havia sido codificado na Inglaterra e cada grupamento que o praticava - fosse uma escola ou universidade - tinha suas próprias regras e, se houvesse um jogo entre uma escola e outra, combinava-se antes de maneira informal quais seriam as regras aplicadas. Com o tempo, dois tipos de futebol começaram a predominar, um deles o association, o outro o Rugby Football, pois fora inicialmente praticado numa escola secundária que existe até hoje chamada Rugby. A diferença mais notável entre as duas formas era que no futebol de Rugby, a bola era carregada pelos jogadores com as mãos e não havia goleiro. Ao contrário, o time que pretendesse marcar um ponto ou goal deveria carregar a bola até a end zone adversária e ali apoiar a bola no chão, ground the ball. Do ponto onde a bola tinha sido apoiada, criava-se uma linha imaginária paralela aos lados do campo ao longo da qual o time que a havia apoiado poderia colocá-la para então tentar um tiro livre ao gol, ou try at goal. Daí a nomenclatura que até hoje perdura no rugby do principal método de pontuação, que o try, mediante o apoio da bola na end zone adversária. Contudo, naquela época, o try não dava ponto nenhum e a pontuação no rugby era idêntica ao futebol, ou seja, um ponto para cada bola que fosse chutada para dentro do gol.

Quando se decidiu codificar o jogo de futebol, a principal divergência entre os defensores do futebol association e do rugby não era quanto a carregar ou não a bola com as mãos, mas sim a uma manobra de defesa e recuperação de bola chamada então de hacking, algo semelhante ao carrinho do futebol atual. Os defensores do futebol queriam banir o hacking e os do rugby, não. Ironicamente, no rugby de hoje é terminantemente proibido derrubar o adversário que carrega a bola com os pés, enquanto que a mesma jogada é permitida no futebol, desde que se atinja a bola e não o jogador.

Enfim, feito este que deveria ser um breve, mas não foi assim tão breve, intróito, fica fácil de entender que os estadunidenses adaptaram o rugby diretamente para criar o seu código de futebol, o que muito alegra a minha esposa neste exato momento.

Mas o que eu realmente queria colocar aqui é a valorização no futebol especificamente brasileiro de uma forma de malandragem que é absolutamente antiética e incompatível com o fair play, hoje presente neste jogo somente no hipócrita ato de chutar a bola pra fora quando um jogador - em 99% dos casos - está simulando uma contusão para impedir um contra-ataque adversário. A diferença entre essa que eu chamo de má e a boa malandragem é tênue, mas existe.

O rugby prega e pratica o fair play, até porque, dado o nível de contato físico que existe no jogo, ele certamente descambaria para a barbárie se assim não fosse. Isso não quer dizer que não haja malandragem, mas ela se traduz em simplesmente não facilitar a vida da arbitragem quando ela deve marcar uma infração contra o infrator. Por exemplo: diz a regra do rugby que o jogador que carrega a bola, quando tackleado, ou seja, agarrado por um adversário abaixo do pescoço e levado ao chão com a bola, deve soltar a bola o quanto antes. A regra fala isso expressamente, upon being tackled, ball carrier must release the ball at once. Ocorre que cabe um certo subjetivismo nesse "o quanto antes" e, se o jogador tiver sido tackleado no meio de vários jogadores adversários e sem apoio dos seus companheiros, ele tenderá a segurar a bola até que esse apoio chegue. Ele corre, sim, o risco de ser penalizado por não soltar a bola, mas ele testará o limite do subjetivismo do árbitro quanto ao "o quanto antes" tanto quanto possível. Na minha opinião, isso não é uma tentativa aberta de ludibriar a arbitragem, mas sim de se utilizar do subjetivismo que a norma posta sempre conterá a seu favor. Marcar a infração é um dever do árbitro, não do infrator. No futebol association, o exemplo disso que mais me ocorre é aquela hoje famosa imagem do Nílton Santos dando um passo para fora da área depois de ter cometido o que deveria ter sido assinalado como um pênalti num jogo contra a Espanha na Copa de 1962. Ele derrubou um atacante espanhol um passo dentro da grande área e o juiz apitou, mas antes que ele assinalasse se tinha sido falta fora da área ou pênalti, Nílton Santos marotamente deu um passo para fora da área e o juiz marcou a falta.

Tecla FF para o futebol de hoje, especialmente o brasileiro. Os jogadores parecem mais preocupados em ludibriar a arbitragem do que em jogar bola. E não é esse que eu acabei de descrever que é a malandragem praticada, mas sim aquela de simular uma falta que não existiu, simular uma contusão que não ocorreu, não para que a arbitragem não marque uma infração contra o malandro, mas sim para marcar algo indevido a favor dele. Isso é o fim da picada. É desleal. Não deveria fazer parte da cultura do jogo, mas acabou assim se tornando.

Por essas e outras razões que tenho acompanhado cada vez menos futebol, por mais que goste do esporte. E, quando paro para ver um jogo, raramente é do futebol brasileiro.