domingo, 2 de outubro de 2011

Boa malandragem x má malandragem

Minha esposa está ao meu lado se entretendo com um jogo de futebol americano. Ela teve a atenção chamada para o esporte inicialmente pela beleza dos uniformes e passou a apreciar o jogo em si. Eu acho o esporte interessante e entendo de sua mecânica e regras mais do que o acompanho, mas, pensando nas suas origens e fazendo um paralelo com o futebol association, que é o nome oficial do esporte mais popular do mundo e objeto da demência da maior parte dos brasileiros, lembrei-me do rugby, do seu efetivo apego pelo fair play e pela absoluta falta de ética que tem caracterizado o futebol, sobretudo no Brasil, na minha opinião.

O futebol americano é uma adaptação declarada do rugby e o rugby, uma dissidência do futebol. Naquela época, o jogo ainda não havia sido codificado na Inglaterra e cada grupamento que o praticava - fosse uma escola ou universidade - tinha suas próprias regras e, se houvesse um jogo entre uma escola e outra, combinava-se antes de maneira informal quais seriam as regras aplicadas. Com o tempo, dois tipos de futebol começaram a predominar, um deles o association, o outro o Rugby Football, pois fora inicialmente praticado numa escola secundária que existe até hoje chamada Rugby. A diferença mais notável entre as duas formas era que no futebol de Rugby, a bola era carregada pelos jogadores com as mãos e não havia goleiro. Ao contrário, o time que pretendesse marcar um ponto ou goal deveria carregar a bola até a end zone adversária e ali apoiar a bola no chão, ground the ball. Do ponto onde a bola tinha sido apoiada, criava-se uma linha imaginária paralela aos lados do campo ao longo da qual o time que a havia apoiado poderia colocá-la para então tentar um tiro livre ao gol, ou try at goal. Daí a nomenclatura que até hoje perdura no rugby do principal método de pontuação, que o try, mediante o apoio da bola na end zone adversária. Contudo, naquela época, o try não dava ponto nenhum e a pontuação no rugby era idêntica ao futebol, ou seja, um ponto para cada bola que fosse chutada para dentro do gol.

Quando se decidiu codificar o jogo de futebol, a principal divergência entre os defensores do futebol association e do rugby não era quanto a carregar ou não a bola com as mãos, mas sim a uma manobra de defesa e recuperação de bola chamada então de hacking, algo semelhante ao carrinho do futebol atual. Os defensores do futebol queriam banir o hacking e os do rugby, não. Ironicamente, no rugby de hoje é terminantemente proibido derrubar o adversário que carrega a bola com os pés, enquanto que a mesma jogada é permitida no futebol, desde que se atinja a bola e não o jogador.

Enfim, feito este que deveria ser um breve, mas não foi assim tão breve, intróito, fica fácil de entender que os estadunidenses adaptaram o rugby diretamente para criar o seu código de futebol, o que muito alegra a minha esposa neste exato momento.

Mas o que eu realmente queria colocar aqui é a valorização no futebol especificamente brasileiro de uma forma de malandragem que é absolutamente antiética e incompatível com o fair play, hoje presente neste jogo somente no hipócrita ato de chutar a bola pra fora quando um jogador - em 99% dos casos - está simulando uma contusão para impedir um contra-ataque adversário. A diferença entre essa que eu chamo de má e a boa malandragem é tênue, mas existe.

O rugby prega e pratica o fair play, até porque, dado o nível de contato físico que existe no jogo, ele certamente descambaria para a barbárie se assim não fosse. Isso não quer dizer que não haja malandragem, mas ela se traduz em simplesmente não facilitar a vida da arbitragem quando ela deve marcar uma infração contra o infrator. Por exemplo: diz a regra do rugby que o jogador que carrega a bola, quando tackleado, ou seja, agarrado por um adversário abaixo do pescoço e levado ao chão com a bola, deve soltar a bola o quanto antes. A regra fala isso expressamente, upon being tackled, ball carrier must release the ball at once. Ocorre que cabe um certo subjetivismo nesse "o quanto antes" e, se o jogador tiver sido tackleado no meio de vários jogadores adversários e sem apoio dos seus companheiros, ele tenderá a segurar a bola até que esse apoio chegue. Ele corre, sim, o risco de ser penalizado por não soltar a bola, mas ele testará o limite do subjetivismo do árbitro quanto ao "o quanto antes" tanto quanto possível. Na minha opinião, isso não é uma tentativa aberta de ludibriar a arbitragem, mas sim de se utilizar do subjetivismo que a norma posta sempre conterá a seu favor. Marcar a infração é um dever do árbitro, não do infrator. No futebol association, o exemplo disso que mais me ocorre é aquela hoje famosa imagem do Nílton Santos dando um passo para fora da área depois de ter cometido o que deveria ter sido assinalado como um pênalti num jogo contra a Espanha na Copa de 1962. Ele derrubou um atacante espanhol um passo dentro da grande área e o juiz apitou, mas antes que ele assinalasse se tinha sido falta fora da área ou pênalti, Nílton Santos marotamente deu um passo para fora da área e o juiz marcou a falta.

Tecla FF para o futebol de hoje, especialmente o brasileiro. Os jogadores parecem mais preocupados em ludibriar a arbitragem do que em jogar bola. E não é esse que eu acabei de descrever que é a malandragem praticada, mas sim aquela de simular uma falta que não existiu, simular uma contusão que não ocorreu, não para que a arbitragem não marque uma infração contra o malandro, mas sim para marcar algo indevido a favor dele. Isso é o fim da picada. É desleal. Não deveria fazer parte da cultura do jogo, mas acabou assim se tornando.

Por essas e outras razões que tenho acompanhado cada vez menos futebol, por mais que goste do esporte. E, quando paro para ver um jogo, raramente é do futebol brasileiro.

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