segunda-feira, 3 de dezembro de 2012

Morte. A figura do Ceifeiro Implacável. Fogo, fornos de cremação. Cadáveres. E a Velha.

Voltando para casa do trabalho em um desses dias, tocou o meu telefone celular. Era a minha mãe. Entre outras coisas, contou que um primo dela havia morrido e ela estava se encaminhado para o velório com um dos meus tios.

A família da minha mãe é bem numerosa. Dentro de casa, não tanto, ela tem uma irmã, a primogênita dos meus avós, um irmão mais velho e um mais novo. Já meu avô tinha doze irmãos - DOZE! - e minha avó, onze. Meu avô era de São Vicente, filho de uma local com um português. Nascido no começo do século passado, ele fez o que era então a longa viagem serra acima cedo na vida para exercer a profissão de açougueiro. Talvez por isso e pelo fato do meu avô ter morrido jovem pouco ouço dizer desse ramo da família, pois minha mãe na infância e na adolescência teve pouco contato com esses tios e primos, que aparentemente ficaram adstritos ao litoral. O pouco que sei é que o meu avô e todos - TODOS! - os seus irmãos eram diabéticos e as respectivas causas-mortis de todos foram relacionadas à doença. O meu avô inclusive: teve primeiro um acidente vascular cerebral que o quedou inválido e a esse título aposentado precocemente e, pouco tempo depois, foi fulminado por um infarto, quando ainda estava na casa dos quarenta e minha mãe tinha somente nove anos.

Essas informações evidenciar-se-ão relevantes mais adiante, tanto quanto as concernentes à minha avó.

Tampouco tive a oportunidade de conhecê-la, que era cardíaca e morreu doze anos antes do meu nascimento e mesmo dois anos antes do nascimento do meu irmão mais velho. Segundo consta, ela sofria de doença cardíaca crônica. E, tendo criado praticamente sozinha sobretudo os filhos mais novos e os visto todos adultos, proporcionou a eles maior contato com os tios e primos do seu próprio tronco, estes quase todos radicados no ABC paulista. Assim, que alguém faça a conta, mas se cada tio da minha mãe teve em média os mesmos quatro filhos que a minha avó, veja lá a quantidade de gente que integra a terceira geração dos meus bisavós. E ainda se trata de uma família italiana, pois meus bisavós imigraram com suas respectivas famílias, oriundas da mesma região italiana do Vêneto, quando ainda eram crianças. Católicos devotos e vivendo numa época que precede a televisão, não é de se admirar que tenham tido tantos filhos, nem que tenham fomentado a estrita convivência entre eles e seus próprios filhos.

Entro no campo das suposições informadas agora, pois, repito, não conheci minha avó, mas muito ouvi dizer dela. Filha de imigrantes religiosos e pobres, teve pouquíssima educação formal e conversava com os pais e irmãos no dialeto do Vêneto. Por isso que apesar de brasileira nata, minha avó falava português com um forte sotaque. Provavelmente, também, teve uma criação extremamente rígida, por meio da qual deve ter recebido expressas instruções para crescer, casar, se manter casada e se multiplicar. Tampouco existia televisão no Brasil quando a prole dos meus avós foi concebida, do que eu deduzo que eles praticaram o pecado capital da contracepção ainda que eventual, pois tiveram "só" quatro filhos. Seja como for, minha avó devia ser uma senhora completamente ignorante, imbuída de pitorescos preconceitos, sobretudo contra comunistas. Se há uma vida após a morte, suspeito e rogo que ela deve ter gostado do meu último post.

A rica caricatura que é a minha mãe e que eu passarei a explorar literariamente aqui neste espaço certamente decorre em grande medida de ela ter tido a própria mãe como vetor quase exclusivo de criação. Meu tio mais velho, então, é pior ainda.

Diante da notícia, perguntei primeiro à minha mãe de quem que esse primo era filho entre os numerosos tios dela. Era filho do tio caçula, que foi o único irmão da minha avó que eu conheci. Quando perguntei a idade dele, aí me assustei, pois o sujeito era mais novo que a minha própria mãe. Não espantosamente, ele era também cardíaco e, mais grave que isso, diabético, além de obeso mórbido. Digo mais grave porque a diabetes é a doença que afligiu impiedosamente o ramo paterno da família da minha mãe, mas não tanto o materno. E minha mãe é diabética. Que diabos, já cheguei à conclusão e praguejei à minha mãe em pleno trânsito, é quase uma certeza matemática, então, que eu vá desenvolver a doença.

Então, o bate papo ficou mais divertido, porque minha mãe passou a falar dos arranjos que fazia para comparecer ao velório junto com o meu tio caçula.

?

Minha mãe adora um velório. É horrível falar um negócio desses, mas é verdade. Ela desenvolveu esse "gosto" na época em que a grande maioria dos tios e primos dela já haviam todos se casado. Chegava, portanto, aquela fase da vida em que o único ensejo que se tem para rever os parentes minimamente distantes são os enterros. E, sem inobservar a dor dos diretamente envolvidos com a perda, sobretudo quando morriam de velhice ou doenças prolongadas, minha mãe e minha tia em especial se divertiam nessas ocasiões. Tenho certeza de que contam e ouvem piadas nesses enterros e que literalmente gargalham. Mas, pior que isso, ela desenvolveu um procedimento fúnebre que eu nunca vi tão automatizado em mais ninguém, sem falar na naturalidade com a qual ela lida com cadáveres.

Isso não significa que a conduta dela nessas ocasiões esteja entre as dez mais recomendáveis. Eu ODEIO ir com a minha mãe a enterros, pois sempre a vergonha que passo me torna quase tão morto quanto o próprio morto. Por regra, a Velha ingressa no recinto de cara fechada, cumprimenta os familiares mais próximos efusivamente e perde especial tempo consolando a viúva. Faz cafuné, diz palavras suaves, dá beijo na testa e invoca a Providência. Depois, se aprochega do defunto, fita o rosto da carcaça e segura suas mãos por aproximadamente cinco minutos. Em seguida, ajeita ou as flores no caixão ou a redinha que cobre os restos humanos ou ambas e enfim vai cumprimentar os demais enlutados. Esse procedimento é executado de forma indistinta e idêntica, conheça a minha mãe o morto e seus familiares ou jamais tenha visto um ou os outros mais vivo ou mais gordos antes.

Isso dura mais ou menos uns quinze minutos, que para mim parecem uns quinze dias, ao longo dos quais eu fico me perguntando "o que diabo eu estou fazendo aqui?". Normalmente, após esse tour de force, a Velha se volta para mim e caminha em minha direção, quando eu tenho tempo para respirar fundo antes de ouvir uma de duas coisas: 1) (baixinho, sussurando no meu ouvido) "Ele(a) está horrível, não é? Teve uma doença forte, está com uma expressão de dor!", comentário eventualmente repetido para algum outro presente ao féretro com quem minha mãe tenha mais intimidade; ou 2) (em voz normal) "Olha que bonito(a), está com uma expressão de paz, parece que está dormindo!", comentário este repetido para TODOS os demais presentes ao féretro.

A primeira vez em que eu documentei esse comportamento da minha mãe foi quando faleceu um então chefe meu, que já tinha alguma idade, mas morreu de forma absolutamente inesperada. Eu não conhecia um membro sequer da família dele, que estava extremamente abalada. Não me atrevi a chegar perto deles. Minha mãe, apesar de ter sido contemporânea do morto na mesma faculdade, não o conhecia e tampouco à família. Eu observei com horror ela executando esses primeiros passos do velório. Quando ela veio em minha direção, perguntei baixinho "Mãe, o que DIABO você está fazendo?!" e ela falou não muito alto, mas alto o suficiente para quem estava perto ouvir: "Daniel, quer dizer que VOCÊ NÃO FALOU COM A FAMÍLIA DO MORTO?! VÁ LÁ FALAR COM A FAMÍLIA DO MORTO!"...

Voltando ao velório do primo dela, receoso de ser escalado para ir junto, confirmei que ela levaria meu tio a tiracolo. Ela disse que sim e, "a propósito", reportou estar revirando as coisas dela para uma reforma que fará na casa dela e assim encontrou uns documentos de "vital" importância para ela. Melhor retratar o que se sucedeu reproduzindo, tão fielmente quanto possível, o diálogo que se seguiu:

- Então, encontrei aqui uns formulários do Serviço Funerário do Município de São Paulo!
- Ahn.
- Vocês (referindo-se à prole dela) já estão carecas de saber, mas eu já vou deixar tudo preenchido para não ter problema depois, né?!
- Como é que é, Mãe?
- Eu vou ser cremada. Eu quero ser cremada, não é, Daniel, e é bom que já esteja tudo pronto para vocês não se confundirem depois.
- Cremada, é?
- É.
- Bom, Mamãe, em primeiro lugar, não será VOCÊ que será cremada, será o seu cadáver. Em segundo lugar, pessoalmente, eu tenho me posicionado, no campo metafísico, de forma duvidosa, ou seja, não sou cético nem crente, eu não tenho opinião formada sobre a vida após a morte, eu estou respeitosamente em dúvida quanto à sua existência.
- Humpf! (Resmungo de uma católica que, fora o fato de ser divorciada há mais de dez anos, é praticante e observante)
- Portanto, eu acredito que o morto quando está morto, morto está. Logo, ele não quer nem deixa de querer lhufas e passa a ser problema exclusivo daqueles que a lei indica que são responsáveis pela destinação rápida e sanitária dos seus restos, que, assim, devem fazê-lo como bem entenderem. Não vejo muito sentido em repousar a carcaça dessa ou daquela forma só porque o seu animador em vida assim estabeleceu.
- HUMPF!
- Porém, repetindo que estou em dúvida, eu não estou disposto a correr riscos. Que riscos são esses? De ser o primeiro ser humano vivo a ser espancado por um espírito desferindo seu castigo do Além. Logo, Mamãe, pode ficar tranquila, no que depender de mim, eu cremarei o seu cadáver de estrito acordo com as suas instruções e formulários.
- Não, queridinho, te espancar eu não te espancaria, mas é bom mesmo que você me obedeça.
- Pois é. Seja qual for a reprimenda, vinda do Além ela certamente não será agradável.
- Tudo bem, tudo bem. Mas eu vou deixar que você e os seus irmãos façam com as cinzas aquilo que melhor lhes aprouver.
- Ótimo. Na MINHA casa é que não vão ficar. Se o seu irmão mais velho ainda for vivo, eu vou deixar na casa dele, porque ele gosta dessas coisas.
- Ai, ai. Tá bom, Daniel, deixa eu ir para o enterro.
- Ide, Mamãe.

Ainda preciso falar para o meu tio separar uma prateleira na casa dele para essa ocasião. Ele vai contar piada no enterro dela, mesmo.
 

segunda-feira, 26 de novembro de 2012

Porque eu passei a votar nulo

Votei pela primeira vez aos dezesseis anos, achava que era minha obrigação cívica votar e fiz questão de tirar meu título. Foi a eleição para prefeito em que foi eleito o Celso Pitta em São Paulo. Ao menos nessa e na eleição seguinte, eu votava por e com convicção. Avaliava as propostas dos candidatos, como manda o figurino regurgitado nas tosquíssimas propagandas institucionais do TSE até hoje, e escolhia os que eu considerava os mais preparados para assumir os cargos. Nunca via o voto como uma obrigação.

Mas a vida adulta, as experiências e as observações repetitivas do comportamento humano, como não poderia deixar de ser, foram me tornando mais cético, para não dizer amargo. E, nesta última eleição, fiz algo que até então jamais imaginei capaz de fazer e, agora, após ter tirado a "zica" e que o meu ceticismo/pessimismo com a raça humana em geral e com o fenômeno político tupiniquim em particular se consolidam, não consigo imaginar deixando de fazer de hoje em diante: eu anulei meu voto.

O problema filosófico que eu enfrento não se resume ao fato de que nenhum candidato ou político ativo merece o meu voto, embora isso seja verdade. Mais significativamente, não vejo ninguém defendendo a única plataforma que eu considero tanto séria quanto factível, que é a redução drástica do tamanho do Estado e, obviamente, da tributação.

Em primeiro lugar, é perfeitamente possível fazer uma contundente, feroz e verossímil crítica ao sistema tributário brasileiro focando-se única e exclusivamente no tamanho da carga, deixando completamente de lado a própria qualidade do sistema, ou seja, a sua deplorável funcionalidade ou operabilidade. Por amor à brevidade e por não ser um tributarista de ofício, eu me darei esse luxo. Restringir-me-ei à condição de cidadão: temos uma carga quantitativamente nórdica para serviços subsaarianos. Ponto. O Estado brasileiro se autoatribui uma infinidade de competências, mas não consegue exercer decentemente nenhuma delas. A qualidade dos serviços que presta é pornográfica. E a tributação, no frigir dos ovos, acaba por quase que exclusivamente servindo para sustentar a máquina pública, em si um gigantesco cabide de emprego. Estou ciente de que faço enormes generalizações e que elas são por definição perigosas, mas tenho que as eventuais e ríspidas contestações que receberia deste argumento também nada mais seriam que citações de uma série de exceções às regras gerais que estatuí que, como o provérbio diz, confirmam a regra.

Este é o fenômeno brasileiro. Ao se discutir em termos abstratos, contudo, a situação do Estado piora. O Estado foi uma instituição historicamente concebida com a precípua finalidade de evitar a barbárie na solução dos conflitos de interesse que naturalmente surgem da convivência humana em todas as formas de grupamentos de que já se teve notícia. A evolução social humana culminou com a criação do Estado, instrumento que permitiu se alcançasse o grau de desenvolvimento da espécie e de suas obras que se tem hoje. Agora, a mesma História apontará que a ÚNICA função que o Estado até hoje desempenhou ou de forma satisfatória ou de forma menos insatisfatória que as demais soluções propostas foi essa (repito): evitar a barbárie na solução dos conflitos de interesse. Exceções pontuais - normalmente nórdicas - desconsideradas, virtualmente todas as outras funções que se "inventou" atribuir ao Estado foram ou são desempenhadas em níveis pífios de excelência, do que o Brasil é uma triste e didática ilustração.

Já que estamos falando de ilustrações brasileiras, permaneçamos com elas. Nem da função histórica primária do Estado, que diz respeito, em termos atuais, à promoção de segurança pública, se está perto de cumprir aqui. E isto não é acidental: acaso amanhã a criminalidade no Brasil fosse reduzida a ZERO - e eu me refiro a crimes não praticados pelos agentes públicos - esses mesmos agentes públicos perderiam MUITO dinheiro. A existência da criminalidade gera um infindável propinoduto, que não interessa a ator político nenhum fechar. Aqui, talvez mais do que em muitas nações ocidentais, o interesse político é por se dar a impressão de que se combate a criminalidade sem de fato combatê-la. E isso para falar da deficiência do Estado brasileiro em endereçar a única função genuinamente estatal. Quanto a todas as demais, eu não consigo conceber que seja difícil entender qual é o objetivo real por trás do discurso praticado por todos os pretendentes políticos de que o Estado deve ser aumentado ("mais saúde", "mais educação", "mais segurança", "mais distribuição direta de renda"...): quanto maior a máquina pública, maior o número de atribuições conferidas a ela. Assim, quanto mais atividades tiverem de ser praticadas ou diretamente fiscalizadas pelo Estado, maior será o número de situações em que o desenvolvimento de uma atividade econômica qualquer por um particular - e não nos esqueçamos que o Brasil AINDA NÃO É um país declaradamente socialista, de forma que, em tese, a atividade econômica é desempenhada, ou melhor, deve ser desempenhada primordialmente pela iniciativa privada - estará condicionado à chancela de, na melhor das hipóteses, um burocrata interessado apenas no seu salário no fim do mês e sem compromisso nenhum com a eficiência própria, do "serviço" que presta e, muito menos, com o bom andamento da atividade do particular. Na pior, o particular terá que se reportar a um marginal que o extorquirá sob pena de não ter a suma autorização estatal para ousar realizar a sua atividade "livre". Ainda, quanto maiores as atribuições estatais, maiores os gastos para mantê-la. Quanto maiores os gastos, maior a tributação. O resultado é que o Estado, tanto quanto conseguir vender ao eleitorado de que ele é necessário e que será "bonzinho" a ponto de querer "cuidar da gente" da melhor forma possível, será cada vez mais inflado e o seu mandatário terá nas mãos as chaves tanto de um gordo cofre quanto de uma polivalente máquina. Quanto maior o Estado, mais tenderá o mandatário a se apropriar da coisa pública como se sua fosse e espoliar o patrimônio público, traficar influências, enfim, operar a máquina da forma como melhor lhe aprouver e sugando em benefício próprio todos os frutos que ela puder lhe fornecer.

Não me parece que essas premissas sejam muito difíceis de entender. No entanto, não se vê um único candidato a cargo nenhum aparecer com uma plataforma de redução radical do tamanho do Estado. De corte de gastos. Desburocratização. Minimização dos serviços prestados pelo Estado. E, consequentemente, diminuição da folha de pagamento, dos gastos públicos e, por conseguinte, drástica redução da tributação. Ao contrário, as propostas políticas são sempre no sentido de aumentar a influência estatal, as oposições atacam as situações não afirmando que as situações inflaram desmedida e desnecessariamente o Estado, mas sim que o fizeram da forma errada, prestando maus serviços, deixando de prestar serviços essenciais para prestar supérfluos... E, quando falam em redução da carga tributária, quando muito tangenciam o assunto, só se arriscam a prometer - sem cumprir - não aumentar ainda mais a carga.

Logo, TODOS os discursos praticados hoje no cenário politico brasileiro são, necessariamente, ou ingênuos ou mal intencionados. Não há como escapar disso. Se o cidadão efetivamente acredita que é possível o Estado, qualquer que ele seja, mas quanto mais o brasileiro nos próximos quatro anos - quem sabe, em 375 anos, nós seremos a Dinamarca hoje, mas ser a Dinamarca em dois anos e meio, que é o que se costuma prometer, isso não vai acontecer MESMO - exercer todas as suas competências às mil maravilhas e ser o grande difusor do bem-estar, por tudo o que eu já falei e por tudo o que a História mundial já demonstrou vez após a outra, o sujeito é quase um caso de hospício de tão ingênuo que é. Por melhores que sejam as intenções e as administrações, o Estado é inescusavelmente burocrático e nunca conseguirá prover os serviços que se propõe a prestar de forma mais eficiente que a iniciativa privada. A iniciativa privada, ainda que potencialmente cara, ganha de qualquer forma de prestação de serviços estatal na relação custo/benefício, pois os serviços estatais são tão horrorosos quanto são mal ou simplesmente não pagos. Enfim, o Estado não tem condições de ser o grande e bom pai de todos que prega ser e o observador e candidato minimamente inteligente tem plenas condições de perceber isso.

Sobra o mal intencionado, personagem adequado a 99% dos casos. O indivíduo SABE da inépcia do Estado tanto quanto eu, mas também sabe que não vai ganhar a eleição falando que cada um com os seus problemas e se entrarem em desavença, não se matem, chamem o Judiciário, que é a única coisa para que o Estado realmente serve, e olhe lá. Ele tem que falar que vai dar creche, vai dar escola, vai dar hospital, vai dar segurança, vai matar - e não prender - bandido, vai dar bolsa-família, vai fazer vista-grossa a ocupação irregular e a gato na eletricidade, gato na TV a cabo, gato no gás e ao despejo de esgoto sem tratamento no corregozinho que passa pelo meio da comunidade.

Conforme eu queria demonstrar, portanto, a única plataforma política séria - por tal entenda-se de boa-fé e não ingênua - e factível é a de redução radical do tamanho do Estado. Não defendo que o Estado deva, em qualquer parte do mundo e para qualquer nação, se restringir a única e tão somente o judiciário e seus desdobramentos: polícia, ministério público, advocacia e demais órgãos próprios para a rápida e justa solução dos conflitos. Entendo que, sempre considerando as realidades regionais, em princípio, toda e qualquer função atribuída ao Estado que não seja o arbitramento dos conflitos de interesses é histórica e filosoficamente anômala. Aí se incluem, para situar a coisa mais próxima da nossa observação brasileira, prestação de serviços de saúde, educação e previdência, aprovação de empreendimentos imobiliários, alvarás de construção de residências unifamiliares, autorização para instalação de lombada na rua, alvará de funcionamento de botequim de esquina, etc. Logo, se se pretende atribuir ao Estado qualquer uma dessas funções que não o arbitramento de conflitos, eu proponho que se pergunte o porquê e que se faça uma análise fria e objetiva acerca da capacidade do Estado de realizar todas elas com eficiência não só satisfatória, mas superior à que a iniciativa privada apresentaria. Se a análise concluir negativamente, não é o caso de se atribuir ao Estado essa função. É esse, em síntese, o programa governamental que eu aguardo ser declarado por algum candidato a qualquer cargo político no Brasil para que esse indivíduo receba meu voto. No entanto, como a probabilidade de aparecer um camarada desses é menor do que o surgimento de uma prova irrefutável da existência de Boitatá, eu começo a me conformar que anularei meu voto até o fim da minha vida, a não ser que o voto passe a ser facultativo, o que considero igualmente difícil.

Cheguei, pois, a todas essas tristes constatações. Provei, para mim mesmo, por A + B, que não há um único discurso político crível sendo praticado no Brasil. Ao contrário, os palanques são ocupados ou por marginais ou por desavisados crônicos. E eu simplesmente me recuso a votar em qualquer um deles.

quarta-feira, 18 de julho de 2012

The Birdcage

Esses dias eu fui realizar um serviço numa cidadezinha do interior. Traje circense completo, terno e gravata, como de praxe. Findo o ofício, caía a tarde e eu avistei um botequim bem simples, estrategicamente localizado - ou seja, do outro lado da rua da Prefeitura e dividindo muro com uma funerária, cujo nome fantasia, salvo engano, era "Descanse em Paz" - e ousei entrar.

O botequim era pequeno e simpático, descrição apta também à única atendente de prontidão. A cidade não é tão pequena assim, mas aparentemente era provinciana o suficiente para que a mocinha tratasse com óbvia deferência, além, é claro, de muito boa educação, qualquer forasteiro que chegasse trajando terno e gravata. Sei lá, bobear nem o prefeito do lugar deve usar terno, então, pintei lá assim vestido e fui confundido com alguém importante.

A moral desta crônica terá que ser apresentada antes do final, porque acho que vai ficar mais interessante eu contar o que então se sucedeu não sob o formato de narrativa, mas sim reproduzindo tanto quanto possível, parafraseando na pior das hipóteses, o diálogo que travei com a menina. Enfim, independentemente da necessidade de incrementá-las, preciso escolher melhor os alvos das minhas piadas.

Ao diálogo.

"Boa tarde!"
"Boa tarde, doutor!"
"Você tem cafezinho expresso?"
"Tem sim, doutor."
"Então, pelo amor de Deus."
"Um minutinho só, doutor."
"Muito obrigado."

Ela então me serviu o cafezinho, eu tomei, paguei e continuei sentado numa das mesas, onde abri meu celular e comecei a tentar puxar meus emails.

"Você se incomoda se eu ficar aqui um pouquinho?"
"Não, doutor, o senhor pode ficar à vontade."

Ao terminar de ver os emails - surpreendentemente, o sinal estava bom - fiz a gentileza de levar o pires e a xícara até o balcão e não resisti:

"Você está aí me chamando de doutor só porque eu estou de terno e gravata?! Quem te garante que eu não sou dono de boate gay?!"

E aí a menina, coitadinha, arregala os olhos, sobe as sobrancelhas até o couro cabeludo e fala baixinho:

"Ai, o senhor é dono de boate gay, doutor?"
"Não, filha..."

Tenho que aprimorar os alvos das minhas piadas. c.q.d.


segunda-feira, 16 de julho de 2012

O Danúbio não é azul

Bom, comecemos com as justificativas. Primeiro, já descumpri minha promessa de postar diariamente. Por incrível que pareça, acabo tendo menos tempo para isso aos finais do que durante a semana. Rogo que me perdoem, sobretudo porque não farei postagens meia-boca só para cumprir cronograma. Se tenho veia artística ressaltada ou não, julguem-me vocês, mas minhas obras, sejam profissionais ou amadoras, são artesanais. Nem sempre vingam, como qualquer empresa humana, mas eu procuro sempre fazer o melhor com qualquer coisa que efetivamente me proponho a fazer. Como este blog. A outra justificativa é em relação à lamentável omissão do meu projetado roteiro italiano de uma passagem por Maranello, com visita à sede da Ferrari, seguida do Grande Prêmio de Monza de Fórmula 1 - o que significa que eu terei que fazer o roteiro num mês de setembro. Já respondi ao comentário correlato à minha primeira postagem do PROSUGO, mas elaboro melhor o meu pedido de desculpas aqui, ressaltando que tentarei, sob permissão de quem de direito, é claro, ingressar em Maranello pela entrada da cidade interditada pelos tiffosi em razão do Gilles Villeneuve ter marcado o asfalto ali depois de uma arrancada com a sua Ferrari de passeio.

Adiante. Calha que minha ideia de percorrer a trilha ciclística do Rio Danúbio não é exatamente original: uma curta pesquisa, que foi o que tive tempo de fazer, me informou que se trata de uma dos roteiros mais populares de verão entre os próprios europeus. Mas que se dane. Eu não quero simplesmente passear, eu quero e vou também estudar, documentar, entrevistar e absorver o máximo de informação possível acerca da história, geografia e geologia do curso d'água. Escrevendo isto, me ocorre que este é um assunto que me fascina desde garoto. Eu já era chato e caxias - talvez mais do que sou hoje - e era indignado desde que me dei por gente com a poluição dos Rios Tietê e Pinheiros. Não entendia como se deixava que eles fossem tão sujos. Não tinha, obviamente, discernimento para entender o que era uma ocupação imobiliária irregular, nem do uso político que se faz delas, nem, portanto, da inexistência de vontade política e da própria população envolvida em acabar com elas e em investir em saneamento básico, pois isso acabaria com os gatos no esgoto e na água encanada, etc., etc., etc. Mas fosse pelo que fosse, não gostava de ter cursos d'água tão caudalosos e poluídos na minha cidade. Hoje, a geografia - a hidrografia, particularmente - me intriga mais, pois é meio louco pensar que um filete de água que brota dos cafundós do meio do mato em Salesópolis vai virar um rio imponente que vai acabar por banhar Buenos Aires e Montevidéu. E se isso é verdade para o coitadinho do Tietê, que não tem trilha nenhuma que eu consiga seguir civilizadamente da nascente à foz, também o é para o glamouroso Danúbio, embora ele seja marrom - por barrento, não poluído, ao menos no trecho em que eu o conheci, em Budapeste - não azul, como sugeriu Strauss em sua eterna valsa. O que não o impede de ser um belíssimo e encantador rio.

Preciso ainda levantar muito mais informações sobre os preparativos necessários para uma excursão dessas, mas a boa notícia é que há uma infinidade de sites, alguns aparentemente muito elucidativos, sobre o tema. É questão de tempo até que eu consiga sorver tudo o que preciso saber. Fora isso, ainda também sou bizarramente leigo acerca de bicicletas propriamente ditas. A única coisa que sei é que gosto muito de pedalá-las! Entretanto, tenho muito o que aprender sobre os melhores tipos e modelos de bicicleta para os meus objetivos, manutenção, preservação e segurança, seja relacionada à minha própria integridade física, ou seja, proteção contra acidentes, como da própria bicicleta, ou seja, se há possibilidade de eu fazer seguro da gloriosa magrela. Eu espero que sim; sou um entusiasta de fazer seguro, o que pode decorrer da realidade da segurança pública deste tosco País.

Termino mudando um pouco o assunto para o também projetado roteiro escocês, isto porque uma das razões pelas quais eu não consegui escrever durante o final de semana foi a exibição do filme Coração Valente em algum dos canais da TV a cabo - o que me prontificou a assistir ao filme pela enésima vez. O filme tem uma fotografia fantástica, o argumento é bastante dramatizado em comparação com os eventos históricos e o resultado final, na minha modesta opinião, é muito bom. A pancadaria no melhor estilo - literal - sangue na tela ajuda, é claro. O que eu gostaria de registrar neste ponto, no entanto, é a curiosidade em relação ao álbum Tunes Of War lançado pela banda alemã Grave Digger mais ou menos na época do filme. Os desavisados podem crer que eles se inspiraram no filme, mas não é verdade. O Grave Digger, liderado pelo sex symbol elevado a menos um que é o Chris Boltendahl, realizou diversos álbuns épicos, cujas músicas contavam uma estória só, com começo, meio e fim. O Tunes Of War focou as guerras de independência da Escócia e o resultado agradou tanto os nacionais daquele país que a banda chegou a ser oficialmente adotada pelo clã de Cavanaugh. Enfim, fã de heavy metal e de história como sou, sem embargo da presepada de me locomover de bicicleta de destilaria a destilaria, aproveitarei os momentos de sobriedade para percorrer os palcos das clássicas batalhas de Stirling Bridge, Falkirk e Culloden Muir, por exemplo, e aprender e documentar um pouco mais da interessante história da Escócia e das Ilhas Britânicas em geral.

Sigam-me os parcamente ajuizados!

sexta-feira, 13 de julho de 2012

PROSUGO: Dia 2

No quesito preparação física, a coisa hoje desandou: não só não fui treinar - verdade seja dita, por falta de tempo - como fui comer uma pizza. Amanhã, no entanto, é um novo dia e eu vou treinar, não importa o frio que faça. Eu, afinal de contas, gosto muito do frio.

Por hoje, para não ficar sem nenhum registro, consigno que empreenderei pesquisas que me auxiliarão no quesito logística, como buscar informações mais precisas sobre a trilha do Danúbio e também vou dar uma olhada em modelos de bicicleta. Eu ainda preciso comprar a minha!

Amanhã eu apontarei aqui os resultados desse meu início de pesquisas e reportarei o rendimento do treino. Uma boa noite a todos.

quinta-feira, 12 de julho de 2012

Projeto Surrar as Gônadas

Tenho, na verdade, vários projetos. Acho difícil que consiga realizar todos, mas ainda não sei exatamente com quantos deles concluídos eu me daria por satisfeito. Quero ir daqui até Montevidéu. E de lá a Santiago. E de lá a Fairbanks, Alasca, ponto mais ao norte das Américas acessível por estradas. Neste ínterim, faria a Highway 1, magnífico caminho que acompanha a costa californiana e tem seu mais lindo trecho entre Los Angeles e San Francisco, a cidade em que, escrevam, um dia estabelecerei residência e assim será até o fim dos meus dias, sem embargo de eu já ter percorrido este caminho de carro mais de uma vez. Mesmo de carro quero fazê-lo mais vezes. Em todo o caso, nos EUA, valeria a pena também cumprir a Route 66 - brega, né? Mas foda-se. Mais para cima, havendo trilhas ou não, sairia de Thunder Bay, na extremidade oeste - Lakehead - do Lago Superior, e iria até a foz do Rio São Lourenço, passando, no caminho, entre tantos outros locais ao longo de todos os Grandes Lagos, é claro, pelas Cataratas do Niágara, onde compraria a capa amarela e berraria para o Pica Pau descendo-as num barril. Todos estes roteiros eu planejo realizar, é claro, a viagens de bicicleta, como o título deste registro sugere.

No Velho Continente, há praticamente infindáveis opções: a trilha de bicicleta do Rio Danúbio, por exemplo, que se estende por mais de 600 Km. Com trilha ou não, eu gostaria mesmo é de percorrer o Danúbio da nascente ao delta no Mar Negro. Esta viagem certamente é uma aula viva de história, geografia e geologia, o que deve ser verdade também para o Rio Reno, que é outro que eu gostaria de percorrer. Esses dois cursos d'água, que serviram como fronteiras naturais para o Império Romano, têm registrada em suas margens alguns dos principais capítulos da história da Europa e da civilização ocidental em geral, portanto. Geologicamente, também são interessantíssimos, pois a erosão mais intensa causada pelas águas mais altas do Reno em relação às do Danúbio eventualmente fará com que as atuais nascentes - incluídas as de alguns tributários - do Danúbio serão arrebatadas pelo Reno. Percorrendo uma e/ou outra dessas rotas, eu interromperia a viagem no tributário correspondente e subiria até o Piz Lunghin, montanha no Cantão suíço de Grisões, da qual brotam nascentes de diversos rios. O especial a respeito dela é que uma desssas nascentes é de um afluente do Danúbio, que, como já dito, deságua no Mar Negro; outra, de um subafluente do Reno, que deságua no Mar do Norte, que não deixa de ser uma parte do Oceano Atlântico; e um outro rio que ali nasce eventualmente despeja suas águas no Pó, principal rio da Itália que deságua no Mediterrâneo. A propósito, por que não, percorreria o Pó todo montado na magrela, também.

Na Itália, terra da maior parte dos meus ancestrais, então, eu me esbaldaria enquanto meus testículos seriam pressionados contra o selim até ficarem do tamanho de tâmaras ressecadas. Em Pompéia e no Vesúvio eu acho que ficaria passeando um dia inteiro em cada um. Visitaria a abençoada terra e os parentes vivos do meu avô, na Comuna de Pedrengo, Província de Bérgamo - eis aí a origem do meu nome! - na Região da Lombardia, onde também fica, a aproximadamente 100 Km dali, atravessando Milão no sentido sudoeste partindo de Bérgamo, a linda Comuna de Vigevano, terra dos avós da minha esposa, na Província de Pavia. Entraria na Região de Trentino Alto Adige, vergonhosamente surrupiada da Áustria ao final da Primeira Guerra Mundial, e escalaria - de bicicleta! - a montanha na fronteira moderna com a Áustria onde está localizado o ponto mais setentrional da Itália. Acho que apanharia se inventasse de andar por Veneza de bicicleta, mas em Florença eu acho que eu não teria problemas. Esta a cidade que eu visitaria tanto pelos mesmos motivos que levam milhares de turistas para lá todo ano como em deferência à comédia Amici Miei, especialmente o segundo filme - Atto Due - do Mario Monicelli, um dos meus filmes favoritos, em que nada mais, nada menos que Philippe Noiret e Adolfo Celi roubam a cena, sem falar no Ugo Tognazzi. Não esqueci Roma; é óbvio que eu passaria por lá. Veria com vagar todos os locais de interesse histórico, faria um retiro de estudos sobre o Império Romano, que eu nunca tive oportunidade de estudar a fundo, e andaria de bicicleta na Cloaca Maxima.

Geográfica e geopoliticamente, hoje, a Grã-Bretanha não tem nada que ver com Roma. Mas já teve. Por isso e, de novo, pela mesma infinidade de razões que levam hordas de turistas para lá todos os anos, eu também iria para lá de bicicleta. E perderia mais tempo na Escócia. Tudo bem que pode ser uma contradição biológica, mas dane-se: sim, eu faria o tour das destilarias - me lixando para a dificuldade de pedalar nas Highlands - de bicicleta! E de lá eu iria para a Ilha de Man, cronometrar o tempo que eu levaria pedalando o trajeto percorrido todo ano na mais perigosa corrida de motocicleta de que se tem notícia. De moto de competição, parece que a volta dura 21 minutos. Sabe-se lá quanto raios eu conseguiria fazer isso de bicicleta! Ah, sim, quase me esqueço, na Escócia, antes de ir para Man, eu teria que ter ao menos noções básicas de gaita de fole. Tocar gaita de fole é um projeto paralelo e talvez até mais complexo do que os roteiros de bicicleta, mas eu morreria um pouquinho menos feliz do que eu acho que eu mereço se não aprender a tocar.

Salvo grossos contratempos, os registros de preparação para o Projeto Surrar as Gônadas serão diários. Cabem os parênteses: proposta ousada para quem não lançava nenhum registro desde fevereiro. Aguardem-me. Pretendo documentar cuidadosamente cada um desses roteiros, por fotos, filmes e, é claro, pelos meus Registros Esparsos. Enfim, por preparação entenda-se tanto física quanto logística. A física, hoje, aliás, tropeçou: não consegui ir à academia hoje... Mas já adianto como venho treinando: hipertrofia iniciante para ganhar potência muscular e diminuir o percentual de gordura e treinos de corrida para desenvolver a parte aeróbica. Também pedalo nos dias em que não tenho treinos de corrida, mas pego pesado mesmo neste quesito nos treinos direcionados. Está certo que não há fotos minhas aqui, mas tenho que me utilizar da expressão "por incrível que pareça" para afirmar que estou, aos 32 anos de idade, na melhor forma da minha vida. Depois do meu primeiro check up, há quase um ano, que apontou que eu estava "fofo" e com alguns indicadores não muito bons, especialmente colesterol alto, resolvi mudar meus hábitos alimentares e intensificar a atividade física. A alimentação é uma Dieta Gracie não radical, em que tento seguir ao menos suas linhas mestras. Nessa brincadeira, perdi, desde lá, 15 Kg. Falando em Gracie, os treinos de jiu jitsu farão parte da minha rotina de preparação, apesar de serem, em si, outro projeto autônomo.

Espero que gostem dos meus relatos e que torçam por mim!

quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012

Responsabilidade

Com mais intensidade no exterior do que no País, tenho a impressão de que a defesa do direito ao aborto se tornou uma bandeira politicamente correta. Fala-se em liberdades civis, igualdade entre os sexos, do direito da mulher de dispor da forma como bem entender do seu próprio corpo sem sofrer censura social ou jurídica por isso e, mais veementemente, que se trata de uma questão de saúde pública. O lobby autodenominado pró-vida, também, não se ajuda, pois o grosso da sua argumentação é composto de conotações religiosas.

Sou indignado com tanto uma linha quanto a outra. Por um lado, argumento religioso não pode ter espaço em nenhuma discussão plural e democrática. Mas, pelo outro, e foco no movimento ou movimentos pró-escolha brasileiros e seu argumento preferido, afirmar que a questão do aborto seria de saúde pública é uma falácia e encerra um discurso paternalista e ao mesmo tempo - e por isso mesmo - ou ingênuo ou desonesto.

Comemorou-se recentemente a nomeação de Eleonora Menicucci, de quem eu pessoalmente, confesso, nunca tinha ouvido falar, para a Secretaria de Política para as Mulheres. Trata-se de uma ex-companheira de guerrilha da Presidente Dilma Rousseff e que já deixou claro, logo em suas primeiras declarações, sua posição pela legalização do aborto. Ela empunhou a bandeira da "questão de saúde pública" e foi aplaudida por, entre outros, citando somente o que me lembro de nome por conta de um link para a sua coluna no Facebook, Leonardo Sakamoto. Não consigo achar agora o link dessa coluna dele, que saiu logo após a nomeação da Menicucci, mas foi ali dito e ilustrado o que se entende por essa questão de saúde pública: as mulheres com condições financeiras suficientes para tanto nunca tiveram a menor dificuldade para praticar aborto quando bem entendem, enquanto que às pobres sobram as soluções caseiras, como medicamentos ilegais vendidos no mercado negro e agulhas de tricô, o que lhes causa complicações médicas sérias, comumente levando à esterilização ou mesmo morte.

Em primeiro lugar, a questão, pela forma como posta pelos próprios defensores dessa idéia, não é nem de saúde, nem pública. Avaliemos antes o suposto caráter público, partindo ainda do pressuposto que envolveria a saúde. Pública é qualquer circunstância que afete toda a população de forma difusa, incluindo ricos, pobres e classe média. Ora, se as ricas não são por ela atingida, se a questão é adstrita às mulheres pobres, então não é pública por definição. Já me permito afirmar que quem dá essa roupagem ao tema aborto está ou mal informado ou tem a deliberada e má intenção de fazer crer que uma questão restrita a um determinado segmento da sociedade é do interesse da sociedade toda. Ou seja, emprega um discurso inflamatório, falacioso e eleitoreiro. Achar que a parcela mais abastada tem o dever de provir à menos favorecida materialmente da sociedade pode ser uma proposta política, mas dizer que é efetivamente uma questão de interesse público atenta contra conceitos semânticos e empíricos.

Prosseguindo, quando se afirma - provavelmente com razão - que as mulheres ricas não tem a menor dificuldade para abortar sempre que lhes é conveniente e se valendo de excelentes médicos, equipes e equipamentos e que as pobres se sujeitam a procedimentos rudimentares que implicam horrorosas complicações em boa parte das vezes não se está encerrando uma questão de saúde, mas sim uma questão de segurança pública. O aborto eletivo, hoje, pasmem, é crime. Logo, o que se está dizendo é que nem as mulheres ricas nem as pobres tem sido eficientemente punidas pelo Poder Público quando, ambas, cometem isso o que ainda é um crime. O problema de saúde suportado pelas pobres nada mais é que uma conseqüência que não extirpa o caráter essencialmente jurídico da discussão. Isso porque se a repressão desse crime fosse efetiva, nem as pobres, nem as ricas sequer conseguiriam realizar aborto, ou ao menos pensariam duas vezes antes de tentar, por receio da persecução criminal.

Pois bem. Desfeito o mito de que se trata de uma questão de saúde pública, vou enunciar minha posição contrária ao aborto empregando argumentos absolutamente racionais e materialistas. Defendo que o tratamento jurídico do aborto tem que ser mantido como está e a repressão ao crime, efetivada, pois a mulher que deseja abortar por pura e simples conveniência se iguala a qualquer criminoso no sentido de que quer fugir da responsabilidade pelas conseqüências de um ato absolutamente voluntário seu.

Volto a dizer que tenho ojeriza a proselitismo religioso num debate plural. Pregar é uma coisa, impor é outra. Por mais que encha o saco, não dá, de fato ou de direito, para proibir o religioso de divulgar a palavra da denominação dele e de arrebatar mais ovelhas para o seu rebanho, conforme o mandamento estipulado pelo seu respectivo salvador. Porém, quando esse camarada pretende que a legislação, que deve ser observada por todos, independentemente da fé que professam ou deixam de professar no laico ambiente nacional, contenha e imponha conceitos de sua própria religião, ele não está pregando e sim obrigando todos a papar da hóstea dele. Isso não só é inconstitucional como é golpismo. É querer reunir o Estado com a igreja, qualquer que ela seja, assim tomando a máquina de assalto a serviço dos fiéis. Absolutamente inadmissível num debate legislativo.

Dito isso, considerando que a legislação brasileira hoje permite a realização do aborto em caso de estupro ou de risco à vida da mãe, bem como que a jurisprudência tem majoritariamente permitido o procedimento em caso de inviabilidade de vida extrauterina, de forma que obrigar a mãe a levar a cabo a gravidez a reduziria a um caixão ambulante e seria atentatório à dignidade da pessoa humana, um preceito constitucional inafastável, quando se fala em legalizar o aborto refere-se, obviamente, ao aborto puramente eletivo. Fala-se em permitir que a mulher que praticou sexo consensual e sem proteção interrompa a gravidez que foi um subproduto da sua diversão por uma conveniência sua, que pode ser mera ou não, mas não deixa de ser uma conveniência absolutamente subjetiva.

E é aí que eu queria chegar. O Estado não é pai nem mãe de ninguém. O Estado não deve se ocupar dos subjetivismos das vidas particulares das pessoas, deve se pautar, sempre e somente, por critérios objetivos. E a conveniência de gerar um filho por meio de sexo voluntário não tem nada de objetivo. Embora os religiosos também digam isso, não deixa de ser uma verdade material que o feto não pediu para nascer e não tem culpa do ato praticado pelos seus genitores. Eu, como a grande maioria das pessoas, estou aqui não porque pedi, não porque Deus, D'us, algum deus ou uma cegonha me mandou, mas sim porque meus pais realizaram um ato absolutamente voluntário do que sobreveio a minha concepção. Se a minha vinda era ou não conveniente para eles no momento das suas respectivas vidas em que estavam, PROBLEMA DELES. Pelo mesmo motivo, embora isso pertença a outro assunto, eu não devo favor nenhum a eles por terem me criado e me provido materialmente até o momento em que eu podia fazer isso por mim mesmo. E a mulher, rica ou pobre, que tem à sua disposição uma infinidade de métodos contraceptivos, por irresponsabilidade e/ou empolgação realizou esse mesmo ato e gerou um novo ser humano em potencial da mesma forma que os meus pais, tal concepção também é problema exclusivamente dela e do parceiro sexual dela. Ah, mas a pobre às vezes casa por pressão social, apanha do marido, quem dirá não foi estuprada pelo marido ou namorado... Ao primeiro problema eu respondo que todo mundo tem livre arbítrio. Pressão da sociedade, da comunidade, dos pais e família não é algo que deva ser desprezado, mas, sempre, no frigir dos ovos, todo mundo tem a capacidade de pensar e decidir, quando adulto, o que quiser da vida. O Estado não é avalista de más decisões tomadas nas vidas particulares das pessoas, repito. Não cabe ao Estado nem a ninguém se imiscuir nas razões por quais a fulana desse exemplo sucumbiu a essas pressões, mas, seja como for, foi uma escolha dela. Já as outras duas circunstâncias são casos de polícia. Não existe hoje a Lei Maria da Penha? A mulher tem plena possibilidade e encontra proteção estatal para denunciar o marido ou namorado quando é vítima de abuso. Da mesma forma, se do abuso sobreveio concepção, a lei hoje já permite a ela a realização do aborto. Mas, se ela não denunciou o abuso e não reportou o estupro, não há como ajudá-la. Protocolar "sinto muito" para você. Problema seu.

Enfim, não há desculpa para a mulher que porta uma gravidez indesejada advinda de sexo voluntário. As adolescentes são problema dos seus próprios pais, que não deram à filha a instrução adequada para evitar esse tipo de destempero. É justo que criem os netos. Não sendo isso viável, que disponibilizem a criança para adoção. As adultas, maiores e capazes, têm à disposição camisinha, pílula, diafragma, DIU, aplicações de anticoncepcionais... Consulte o seu ginecologista, particular, convênio ou SUS, ele te dará todas elas. Não consultou? Não se protegeu? Concebeu?! Ah, ele é casado? Ah, você não tem dinheiro? Ah, seus pais vão te matar? Ah, a vizinha vai comentar? Minha filha, o problema é seu. Você não é traficante de drogas nem assaltante de banco, mas, tanto quanto eles, você realizou um ato voluntário, dele sobrevieram conseqüências que você não queria e você está tentando se livrar delas. Mas nem a você e nem a eles é dado fugir das responsabilidades de ser um adulto inconseqüente.

terça-feira, 31 de janeiro de 2012

segunda-feira, 30 de janeiro de 2012

Frase do dia

Diante desta pérola http://noticias.terra.com.br/brasil/fotos/0,,OI186314-EI306,00-PM+simula+ato+obsceno+com+estatua+de+vaca+em+SC.html sou obrigado a citar Pedro, após ouvir do Mestre que ele planejava adentrar Jerusalém no dia que veio a ser consagrado na cultura ocidental como Quinta-Feira Santa montado num jegue:

"Magrão, olha a cagada, acho que isso aí vai dar merda, velho..."

quinta-feira, 5 de janeiro de 2012

Chiquinho (Cãozinho do focinho decepado) recebe alta e é adotado!

Chiquinho (Cãozinho do focinho decepado) recebe alta e é adotado!

Feliz 2012! Rumo a Londres! E "vamos tentar trazer alguma medalha para o Brasil"...

Estamos em 2012 e, dentro de poucos meses, serão disputadas as Olimpíadas de Londres. Pouco a pouco, a preparação dos atletas e das delegações e as previsões dos comentaristas vão tomando cada vez mais espaço nos noticiários esportivos. No Brasil, parte do foco futebolístico será certamente destinado à preparação da seleção olímpica de futebol, não tanto por conta da relevância da competição, mas muito mais porque se trata do único título do futebol mundial que o Brasil ainda não conquistou. Tenho que é por este motivo isolado, inclusive, que a competição olímpica desperta algum interesse no torcedor brasileiro e que da seleção deste esporte é efetivamente cobrada a medalha de ouro, ao contrário dos nossos demais times olímpicos. E é a falta cultural e institucional de cobrança de vitórias olímpicas e a hipócrita complacência com a derrota praticada pelos próprios atletas que é o foco desta coluna.

Eu reconheço que o desempenho geral do esporte brasileiro - expressão que, aqui, salvo quando expressamente previsto, não abrange o futebol association - , em Olimpíadas e fora delas, melhorou bastante desde que comecei a acompanhá-lo. Minhas primeiras lembranças esportivas remontam à medalha de ouro do Joaquim Cruz nas Olimpíadas de Los Angeles, em 1984, quando eu tinha quatro anos. Lembro melhor ainda da prata dele em Seul-88, que pode ter deixado muita gente feliz, mas eu reagi como um legítimo torcedor derrotado revoltado de oito anos de idade. São pertinentes os parênteses, acho que este é um defeito meu: nunca me conformei com derrotas das equipes ou seleções pelas quais torço ou torci e a dor da derrota sempre superou a alegria da vitória, traduzida internamente mais como uma sensação de alívio por não ter perdido do que de satisfação por ter ganho. Minha mãe bem que tentou me ensinar que às vezes se ganha, às vezes se perde, que a vitória ou derrota do meu time não são mérito ou demérito, respectivamente, meu e que há coisas muito mais importantes na vida do que isso. É verdade, a mensagem era esta e a intenção dela, boa, mas o método pouco didático e ortodoxo do ponto de vista da pedagogia e nada sutil que ela empregou, provavelmente nutrido pela minha avó, que não conheci, mas ouço dizer que era uma legítima mamma italiana ultraconservadora, pobre, ignorante e educada à base dos joelhos no milho e do pau-de-macarrão, não foi muito eficaz. Mas, fora a reação às vezes chiliquenta, racionalmente, acho que tinha e tenho razão em não me conformar com a derrota, pois este inconformismo é o que faz com que o derrotado examine os motivos do seu insucesso e se impulsione à vitória futura. É uma frase meio piegas, mas nada nunca é definitivamente conquistado nem perdido. Professor Jigoro Kano, codificador do Judô, recomendava, muito mais eloquentemente que eu a "nunca te orgulhes de haver vencido a um adversário, ao que venceste hoje poderá derrotar-te amanhã. A única vitória que perdura é a que se conquista sobre a própria ignorância". Fechados os parênteses, desde aquela época, o vôlei começou a prosperar e é hoje talvez a melhor seleção do mundo; o judô é o esporte que mais medalhas conquistou em Olimpíadas para o País, é a única modalidade que produz medalhistas em todas as edições dos Jogos desde 1984, produziu dois campeões olímpicos e, mais recentemente, campeões mundiais, inclusive um bicampeão, João Derly. E no atletismo, ainda que se sobreviva de esporádicos e parcos talentos individuais, as proeminentes de hoje Fabiana Murer e Maurren Maggi entram em todas as competições disputando de igual para igual com qualquer adversária, a última inclusive sendo a atual campeã olímpica de sua modalidade, ao contrário dos ícones de outrora Robson Caetano e Zequinha Barbosa, que, ainda que respeitáveis, disputavam "honrosas" quintas colocações e olhe lá.

Entretanto, coloque-se um microfone na cara de qualquer atleta brasileiro nestes meses pré-Olimpíadas e mesmo durante os jogos e as frases feitas divergirão das "o futebol é uma caixinha de surpresas, mas professor nos preparou, a equipe treinou duro e, com a ajuda de Deus e nossos companheiros, conseguiremos o resultado positivo" dos futebolistas para as arrepiantes "nossa preparação foi muito dura e sofrida, foi muito difícil chegar aqui, é um sonho realizado, e vamos ver se a gente consegue trazer alguma medalha para o Brasil". A fala dos futebolistas é patética, mas ao menos evidencia uma intenção explícita de buscar a vitória. De fato, toda vez que o Brasil disputa uma Copa do Mundo e volta de mãos abanando, dos jogadores, comissão técnica e dirigentes são cobradas explicações. A imprensa e o povo exige um porquê do Brasil ter perdido. Já a dos demais esportistas, não. Denuncia, ao contrário, um odioso conformismo derrotista. O sujeito já começa se vitimizando de falta de apoio para justificar o desempenho pífio e avisa de antemão que qualquer medalha que vier é lucro. A peristaltia já se inverte quando alguma equipe brasileira milagrosamente consegue chegar a uma final olímpica, para os brados entusiasmados do Seu Bolacha, Luciano do Valle: "O Brasil é no mínimo PRATA!". Taí uma ingenuidade pueril que eu tinha e que hoje eu endosso: eu não conseguia entender a felicidade do Bolacha quando ele gritava isso no microfone. Eu juro que o meu serzinho pensava "pôxa, mas se o Brasil for prata, o Brasil vai perder! Perder não é bom!". E eu continuo pensando desta forma! Eu quero MATAR o Bolacha quando ele fala isso! É um absurdo! Como eu já disse, às vezes se ganha, às vezes se perde. É irrazoável esperar a vitória toda vez que se entra em campo, quadra, rinque ou coisa que o valha. Mas quem entra autojustificando a derrota, qualquer que seja o real ou eventual motivo concreto que se tenha para isso - falta de apoio, patrocinador que debandou, mulher que chifrou, o caralho a quatro ou a puta que o pariu - antes do apito inicial só não vai deixar de perder por milagre.

Verdade seja dita, o discurso derrotista dos atletas brasileiros é pertinente. Terceiromundista, mas pertinente. De fato, se nem o futebol, que literalmente para tudo no País, é profissionalmente organizado no Brasil, quem dirá o vôlei, o judô, o tae-kwon-do, o atletismo, o handebol e a pelota basca, sei lá. Isto já foi objeto de outra coluna minha, mas eu acho que devo reelaborar: o futebol brasileiro é a balbúrdia, bagunça, puteiro que descrevi porque seus protagonistas agem como detentores de um monopólio: eles não têm concorrentes no fornecimento de um produto que é considerado pela população como imprescindível. Então, o preço será não aquele determinado pelo encontro natural da curva de demanda com a de oferta, mas sim pela maximização da diferença entre faturamento e custo. O produto, por conseguinte, terá qualidade sofrível e nenhum estímulo para ser aprimorado. Ou seja, é por isso que, apesar de ter o apelo que tem junto à população, o futebol é corrupto e amadoristicamente administrado. Assim, se já o futebol não tem administração profissional, os demais esportes, menos ainda. Seus vetores de financiamento são naturalmente muito mais estreitos que aqueles do futebol por natureza. Então, quando reclamam da falta de apoio, os atletas estão enumerando um fato concreto, eles de fato não têm apoio. Mas a autocomiseração não fará com que eles o venham a ter.

Eu começo a entrar no ponto nevrálgico da minha coluna.

Não raro, o terceiromundismo dos nossos atletas é complementado por uma comparação com os Estados Unidos: "lá, os atletas têm mais apoio e estrutura, etc.", o que é mais do que válido, pois a afirmação é verdadeira. É fato concreto e quiçá notório que os Estados Unidos são a maior potência olímpica de todos os tempos. Eles competem em condições de igualdade com qualquer um e, portanto, com possibilidades amplas de vitória na grande maioria das modalidades. Não satisfeitos, na maior parte destas, eles entram como francos favoritos e em algumas delas - poucas, é verdade, me ocorre como exemplo agora somente o basquete - ainda reduzem a competição a uma mera formalidade, os demais países disputam a medalha de prata. São pouquíssimos os eventos em que eles são coadjuvantes. Enfim, é óbvio que o esporte por lá tem amplo "apoio" - leia-se investimento pesado - do qual se espera e obtém retorno. Mas, como é fornecido esse apoio?

Cabe comentar, antes disso, que os Estados Unidos foram rivalizados ao longo de toda a Guerra Fria pela União Soviética e passaram mais atualmente a ter na China um formidável adversário. Os atletas e seus resultados desses dois oponentes eram e são vetores de propaganda dos respectivos regimes, de forma muito mais explícita da União Soviética. Países comunistas, toda a riqueza produzida neles era ou é amealhada pelos respectivos estados. Passarei a adotar a União Soviética como exemplo para economizar tempo verbal, mas tudo o que for dito a respeito dela pode ser aplicado à China, com a adaptação da abertura capitalista nela operada, que não teve a mínima contrapartida política, o que, na prática, manteve a mesma mecânica de investimento no esporte. Enfim, o estado da URSS investia direta e pesadamente nos seus programas olímpicos para tentar demonstrar a superioridade do seu regime e da sua ideologia... Enquanto seu povo quase morreu de fome um sem-número de vezes ou recebia um salário de subsistência, tinha acesso a produtos de quinta categoria e serviços de última, sujeito a um estado obeso, corrupto e, afinal, insustentável. Como estou falando de esportes aqui, pode-se ter a impressão de que quero dizer que a URSS implodiu por conta do investimento estatal em esporte. Não. Ela implodiu porque todo e qualquer investimento realizado no país inteiro era estatal. Os óbvios déficits foram se acumulando ao longo de décadas e chegou uma hora que nem o estado soviético conseguia continuar a sangrar o próprio povo. E aí foi tudo a pique.

Já nos Estados Unidos, o estado nunca investiu diretamente um centavo sequer nos programas esportivos do país. Tudo parte da iniciativa privada: as escolas preocupam-se em manter equipes esportivas competitivas, pois quanto mais jogadores conseguirem bolsas para jogar pelas universidades, mais visibilidade a investidores elas terão, mais patrocínio e mais dinheiro, que é reinvestido nas próprias escolas e nos seus programas esportivos. Universidades, idem, em maior proporção, pois amealham mais interesse financeiro à medida em que produzem jogadores profissionais de ponta. E os times profissionais são empresas, que buscam o lucro como qualquer outra, que se estrturam nas ligas cujo objetivo é justamente viabilizar o maior lucro possível às suas equipes constituintes, como já expus na coluna que fiz comentando o nosso futebol. Toda essa estrutura estadunidense é concebida para praticar o capital pecado do lucro, mas sem o menor disfarce. Estou sendo irônico, caso não tenham percebido. O fato do esporte ter se tornado um negócio, ao menos no fenômeno deles, é BOM, pois o esporte gera lucro a partir de sua atividade-fim e assim ele se autoviabiliza. Volto mais uma vez à minha coluna do futebol, não como aqui, onde o negócio sobre o qual o esporte se estruturou é escuso e o verdadeiro dinheiro é feito por fora, ou seja, ilicitamente.

Já se estabeleceu a primeira diferença, então: os estadunidenses têm uma estrutura profissional e empresarial para o esporte em todos os seus níveis, enquanto que aqui nem o futebol tem isso. No discurso terceiromundista que eu venho repudiando desde parágrafos atrás, os atletas parecem ter a impressão de que as coisas "são" assim: "lá eles têm apoio, aqui, nós não temos", "lá, a estrutura é assim, aqui, não é", como se esses modelos tivessem sido não concebidos por seres humanos, mas sim ungidos, estabelecidos por algum ser superior e/ou fantástico. Estamos fadados a ter esta porcaria de esporte, enquanto que eles foram abençoados com o esporte que têm. Trata-se de um fatalismo com matrizes religiosocoloniais, mas que não vou abordar tanto aqui, nesta coluna. E é óbvio que isso é uma falácia do tamanho do mundo. A realidade é exatamente a que eu apontei, a estrutura que foi concebida lá teve por objetivo criar um negócio viável para que investidores honestos pudessem enriquecer, e eles não devem desculpas a ninguém por isso. Já aqui, trata-se de uma banca de jogo do bicho metida a besta, um bando de pseudomafiosos de quinta categoria que criaram (mais) uma forma de se locupletar do povão hipnotizado por um ópio (o futebol) que eles ainda conseguiram passar a impressão de que só eles podem fornecer.

Essa é uma. A outra diferença, também tomando por empréstimo trechos dos lamúrios dos nossos atletas, é a falácia de que "lá, há interesse pelos esportes. Aqui, só se tem interesse por futebol". Por interesse, neste caso, entenda-se apelo ao espectador e torcedor. Isso varia nos Estados Unidos de uma região para outra - no Estado de Minnesota, o hóquei no gelo talvez seja o esporte mais popular, por exemplo - mas, de uma forma geral, os esportes que geram mais interesse são, nessa ordem, futebol americano, beisebol, basquete e hóquei no gelo. Os três primeiros atraem espectadores em maior ou menor quantidade em diferenças marginais, enquanto que o quarto lugar do hóquei é um pouco mais distante. Mas eu estou falando de Olimpíadas aqui e, ainda que incluamos as Olimpíadas de Inverno, há somente duas modalidades olímpicas entre esses quatro grandes, e são as duas últimas. Ou seja, querer dizer que há interesse de espectador neste nível nos Estados Unidos para todas as modalidades em que eles possuem proeminência ou dominância é errado.

Então, como é que eles têm atletas de ponta em natação, ginástica olímpica, pólo aquático, judô, luta greco-romana, atletismo, ciclismo, esqui na neve, tênis, remo, etc., etc., etc.? Certamente não é por conta de interesse primário de espectadores. A resposta segue a trilha do que eu já falei: todas as modalidades fazem parte do mesmo negócio, são espécies diferentes do mesmo tipo de investimento. E o que gera maior retorno é a produção de equipes vencedoras. O estadunidense adora um vencedor, seja lá o que for que o sujeito tenha ganhado, pode ter sido um torneio de pôquer ou uma guerra. Se o cidadão vai lá, representando o país, e ganha, ele se torna uma celebridade e os patrocinadores abundam. Tudo bem, a cultura de dividir o mundo entre winners e losers própria deles tem seus contras. Nenhuma derrota é definitiva, como já disse, e essa visão do mundo é demasiadamente simplista. Mas ela também tem seus prós. Qualquer escola nos Estados Unidos que de repente percebe que um garotinho é super talentoso na pelota basca vai investir o que pode e o que não pode para desenvolvê-lo. O garotinho vai acabar numa prestigiosa boarding school, depois vai para a universidade, para a Olimpíada, ganha a medalha de ouro, vira celebridade nacional, ganha patrocínio, dinheiro, vira filme da Disney e o cacete. O pessoal aqui dá risada disso. O repentino status de celebridade do atleta da modalidade mais esquisita e o verdadeiro produto em que conseguem transformar o cara é visto por aqui como brega. E é. É MUITO brega, não é pouco. Mas, com mil raios, quanto dinheiro bom que essa breguice não gerou?! O sujeito saiu do cafundó do Judas, conseguiu estudar em universidade, ganhou uma profissão, foi para as Olimpíadas, ficou conhecido no mundo inteiro e ganhou um bom dinheiro. Escola e universidade que lucrou com ele. Estúdios de filmagem, idem. Tudo dinheiro limpo, contabilizado, não mais-valia de negociata enfiada em caixa dois. Então, quem é o esperto e quem é o otário, o estadunidense mais brega que Reginaldo Rossi com a cueca por cima da calça ou o brasileiro "esperto" dando risada da cara do molequinho ridículo em filme do Bambi?!

Pois aí está. Nos Estados Unidos, cria-se interesse pelo esporte não mainstream por meio da produção racional de equipes vencedoras. Os vencedores geram publicidade positiva, mais investimento e mais vencedores. E não é assim por conta de um golpe de uma varinha de condão, isso decorre de toda uma cultura cujo objetivo é realizar e diversificar a atividade econômica. Aqui, esse interesse não é criado pois os protagonistas do esporte brasileiro não têm interesse - redundância proposital - em ganhar dinheiro com a atividade esportiva-fim. Não é por falta de investimento do governo - ao contrário, repise-se a União Soviética, isso só pioraria a situação. Não é por falta de interesse dos espectadores, do qual não adianta se lamentar e esperar que ele caia do céu como uma dádiva. Dêem aos espectadores algo digno de ser visto, um vencedor, para variar, não um sujeito que chegue lá e se dê por satisfeito de ter chegado em décimo sétimo, que o interesse aparecerá. E, para conseguir produzir um vencedor que não esteja apoiado única e exclusivamente num raríssimo e gigantesco talento individual, não há segredo, crie-se uma estrutura empresarial genuína para o nosso esporte. Não queria tanto falar disso, mas é outro defeito que nós temos, volta e meia aparece um megatalento num esporte que não gera tanta publicidade que vira herói nacional por ter perseverado nas adversidades amparado no seu talento. Essas histórias são bacanas, mas esses talentos são raros. Repito, os Estados Unidos não são o que são no esporte porque têm mais dádivas de talentos do que nós, eles tem mais e mais racional investimento do que nós.

Além disso, o povo tem que aprender a não valorizar perdedor. Não estou falando que os atletas têm que ser recebidos no aeroporto como ovo podre, mas não dá para aguentar uma pessoa que é considerada um ícone do esporte brasileiro como a Hortência dar uma entrevista na véspera de uma final olímpica inédita na história do nosso basquete feminino e dizer que está "satisfeitíssima com a medalha de prata", com a boca cheia. Ela fez isso em 1996, nas Olimpíadas de Atlanta, em que o basquete feminino brasileiro disputou a final contra as donas da casa. Sim, claro, as estadunidenses eram francas favoritas e confirmaram o favoritismo, mas se a principal jogadora da nossa equipe estava com essa mentalidade, o time não tinha a menor possibilidade de ganhar. Essa frase prévia da Hortência transformou aquela que seria uma derrota como outra qualquer num papelão. E ela foi recebida no Brasil como heroína. Não lembro de ter visto uma nota sequer na imprensa na época repreendendo essa declaração dela, ao contrário. Outro papelão jamais decentemente explicado foi o fiasco na Copa de 1998, e a Seleção também foi recebida com pompa e circunstância. Ah, o futebol...

Nunca chegaremos a ser uma potência olímpica - o que seria simbólico de sermos uma verdadeira potência em todos os demais aspectos - confiando em esporádicos talentos individuais, na "divina" superioridade do nosso futebol, que já está capengando de novo, e muito menos entrando em competição com essa mentalidade imbecil de "tentar trazer uma medalha para o Brasil". Comecem não se contentando com prêmio de consolação, tanto atletas quanto público, que a coisa tenderá a melhorar. Perdedor tem que ouvir o velho "às vezes se ganha, às vezes se perde" e ser cobrado por aprender com a derrota e ter um desempenho melhor na próxima competição. Vencedor não pode ser tratado como deus, ter todos os pecados perdoados e tratada a sua vitória como definitiva, tem que ser cobrado pela manutenção do desempenho vitorioso. E, se perder, ser cobrado. Atleta olímpico brasileiro tem que tirar esse brilho nos olhos diante de uma medalha que não seja de ouro no peito, tem que valorizá-la pelo prêmio de consolação que é se apoiar nela para progredir. Temos que parar de nos contentar com pouco, não só no esporte, como em todos os aspectos da vida brasileira. E arregaçar as mangas e trabalhar para fazer dinheiro, sim, senhor.

domingo, 1 de janeiro de 2012

Never fear, the governo is here...

Depois das pérolas "Copa do Mundo se faz com estádio, não com hospital" (Fiofofômeno) e "antes assediar em série moças bonitas e 40 anos mais jovens do que eu do que ser veado" (Silvio Berlusconi), devemos ficar na escuta para um representante da Prefeitura do Município de São Paulo soltar um "antes ter engenheiros que não saibam derrubar prédios do que engenheiros que construam prédios que caem!"????? http://folha.com/no1028640

Frase do dia

Reblogando e retuitando um post do blogueiro/vlogueiro Yuri Grecco - https://twitter.com/#!/Ygrecco
; http://www.youtube.com/user/EuAteu?feature=g-all-lik - eu aproveito para comentar emendando uma frase potencialmente proferida em aramaico por um dos espectadores hebreus do Sermão da Montanha: "taí, do caralho, curti!": http://t.co/ODBHegvs