quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012

Responsabilidade

Com mais intensidade no exterior do que no País, tenho a impressão de que a defesa do direito ao aborto se tornou uma bandeira politicamente correta. Fala-se em liberdades civis, igualdade entre os sexos, do direito da mulher de dispor da forma como bem entender do seu próprio corpo sem sofrer censura social ou jurídica por isso e, mais veementemente, que se trata de uma questão de saúde pública. O lobby autodenominado pró-vida, também, não se ajuda, pois o grosso da sua argumentação é composto de conotações religiosas.

Sou indignado com tanto uma linha quanto a outra. Por um lado, argumento religioso não pode ter espaço em nenhuma discussão plural e democrática. Mas, pelo outro, e foco no movimento ou movimentos pró-escolha brasileiros e seu argumento preferido, afirmar que a questão do aborto seria de saúde pública é uma falácia e encerra um discurso paternalista e ao mesmo tempo - e por isso mesmo - ou ingênuo ou desonesto.

Comemorou-se recentemente a nomeação de Eleonora Menicucci, de quem eu pessoalmente, confesso, nunca tinha ouvido falar, para a Secretaria de Política para as Mulheres. Trata-se de uma ex-companheira de guerrilha da Presidente Dilma Rousseff e que já deixou claro, logo em suas primeiras declarações, sua posição pela legalização do aborto. Ela empunhou a bandeira da "questão de saúde pública" e foi aplaudida por, entre outros, citando somente o que me lembro de nome por conta de um link para a sua coluna no Facebook, Leonardo Sakamoto. Não consigo achar agora o link dessa coluna dele, que saiu logo após a nomeação da Menicucci, mas foi ali dito e ilustrado o que se entende por essa questão de saúde pública: as mulheres com condições financeiras suficientes para tanto nunca tiveram a menor dificuldade para praticar aborto quando bem entendem, enquanto que às pobres sobram as soluções caseiras, como medicamentos ilegais vendidos no mercado negro e agulhas de tricô, o que lhes causa complicações médicas sérias, comumente levando à esterilização ou mesmo morte.

Em primeiro lugar, a questão, pela forma como posta pelos próprios defensores dessa idéia, não é nem de saúde, nem pública. Avaliemos antes o suposto caráter público, partindo ainda do pressuposto que envolveria a saúde. Pública é qualquer circunstância que afete toda a população de forma difusa, incluindo ricos, pobres e classe média. Ora, se as ricas não são por ela atingida, se a questão é adstrita às mulheres pobres, então não é pública por definição. Já me permito afirmar que quem dá essa roupagem ao tema aborto está ou mal informado ou tem a deliberada e má intenção de fazer crer que uma questão restrita a um determinado segmento da sociedade é do interesse da sociedade toda. Ou seja, emprega um discurso inflamatório, falacioso e eleitoreiro. Achar que a parcela mais abastada tem o dever de provir à menos favorecida materialmente da sociedade pode ser uma proposta política, mas dizer que é efetivamente uma questão de interesse público atenta contra conceitos semânticos e empíricos.

Prosseguindo, quando se afirma - provavelmente com razão - que as mulheres ricas não tem a menor dificuldade para abortar sempre que lhes é conveniente e se valendo de excelentes médicos, equipes e equipamentos e que as pobres se sujeitam a procedimentos rudimentares que implicam horrorosas complicações em boa parte das vezes não se está encerrando uma questão de saúde, mas sim uma questão de segurança pública. O aborto eletivo, hoje, pasmem, é crime. Logo, o que se está dizendo é que nem as mulheres ricas nem as pobres tem sido eficientemente punidas pelo Poder Público quando, ambas, cometem isso o que ainda é um crime. O problema de saúde suportado pelas pobres nada mais é que uma conseqüência que não extirpa o caráter essencialmente jurídico da discussão. Isso porque se a repressão desse crime fosse efetiva, nem as pobres, nem as ricas sequer conseguiriam realizar aborto, ou ao menos pensariam duas vezes antes de tentar, por receio da persecução criminal.

Pois bem. Desfeito o mito de que se trata de uma questão de saúde pública, vou enunciar minha posição contrária ao aborto empregando argumentos absolutamente racionais e materialistas. Defendo que o tratamento jurídico do aborto tem que ser mantido como está e a repressão ao crime, efetivada, pois a mulher que deseja abortar por pura e simples conveniência se iguala a qualquer criminoso no sentido de que quer fugir da responsabilidade pelas conseqüências de um ato absolutamente voluntário seu.

Volto a dizer que tenho ojeriza a proselitismo religioso num debate plural. Pregar é uma coisa, impor é outra. Por mais que encha o saco, não dá, de fato ou de direito, para proibir o religioso de divulgar a palavra da denominação dele e de arrebatar mais ovelhas para o seu rebanho, conforme o mandamento estipulado pelo seu respectivo salvador. Porém, quando esse camarada pretende que a legislação, que deve ser observada por todos, independentemente da fé que professam ou deixam de professar no laico ambiente nacional, contenha e imponha conceitos de sua própria religião, ele não está pregando e sim obrigando todos a papar da hóstea dele. Isso não só é inconstitucional como é golpismo. É querer reunir o Estado com a igreja, qualquer que ela seja, assim tomando a máquina de assalto a serviço dos fiéis. Absolutamente inadmissível num debate legislativo.

Dito isso, considerando que a legislação brasileira hoje permite a realização do aborto em caso de estupro ou de risco à vida da mãe, bem como que a jurisprudência tem majoritariamente permitido o procedimento em caso de inviabilidade de vida extrauterina, de forma que obrigar a mãe a levar a cabo a gravidez a reduziria a um caixão ambulante e seria atentatório à dignidade da pessoa humana, um preceito constitucional inafastável, quando se fala em legalizar o aborto refere-se, obviamente, ao aborto puramente eletivo. Fala-se em permitir que a mulher que praticou sexo consensual e sem proteção interrompa a gravidez que foi um subproduto da sua diversão por uma conveniência sua, que pode ser mera ou não, mas não deixa de ser uma conveniência absolutamente subjetiva.

E é aí que eu queria chegar. O Estado não é pai nem mãe de ninguém. O Estado não deve se ocupar dos subjetivismos das vidas particulares das pessoas, deve se pautar, sempre e somente, por critérios objetivos. E a conveniência de gerar um filho por meio de sexo voluntário não tem nada de objetivo. Embora os religiosos também digam isso, não deixa de ser uma verdade material que o feto não pediu para nascer e não tem culpa do ato praticado pelos seus genitores. Eu, como a grande maioria das pessoas, estou aqui não porque pedi, não porque Deus, D'us, algum deus ou uma cegonha me mandou, mas sim porque meus pais realizaram um ato absolutamente voluntário do que sobreveio a minha concepção. Se a minha vinda era ou não conveniente para eles no momento das suas respectivas vidas em que estavam, PROBLEMA DELES. Pelo mesmo motivo, embora isso pertença a outro assunto, eu não devo favor nenhum a eles por terem me criado e me provido materialmente até o momento em que eu podia fazer isso por mim mesmo. E a mulher, rica ou pobre, que tem à sua disposição uma infinidade de métodos contraceptivos, por irresponsabilidade e/ou empolgação realizou esse mesmo ato e gerou um novo ser humano em potencial da mesma forma que os meus pais, tal concepção também é problema exclusivamente dela e do parceiro sexual dela. Ah, mas a pobre às vezes casa por pressão social, apanha do marido, quem dirá não foi estuprada pelo marido ou namorado... Ao primeiro problema eu respondo que todo mundo tem livre arbítrio. Pressão da sociedade, da comunidade, dos pais e família não é algo que deva ser desprezado, mas, sempre, no frigir dos ovos, todo mundo tem a capacidade de pensar e decidir, quando adulto, o que quiser da vida. O Estado não é avalista de más decisões tomadas nas vidas particulares das pessoas, repito. Não cabe ao Estado nem a ninguém se imiscuir nas razões por quais a fulana desse exemplo sucumbiu a essas pressões, mas, seja como for, foi uma escolha dela. Já as outras duas circunstâncias são casos de polícia. Não existe hoje a Lei Maria da Penha? A mulher tem plena possibilidade e encontra proteção estatal para denunciar o marido ou namorado quando é vítima de abuso. Da mesma forma, se do abuso sobreveio concepção, a lei hoje já permite a ela a realização do aborto. Mas, se ela não denunciou o abuso e não reportou o estupro, não há como ajudá-la. Protocolar "sinto muito" para você. Problema seu.

Enfim, não há desculpa para a mulher que porta uma gravidez indesejada advinda de sexo voluntário. As adolescentes são problema dos seus próprios pais, que não deram à filha a instrução adequada para evitar esse tipo de destempero. É justo que criem os netos. Não sendo isso viável, que disponibilizem a criança para adoção. As adultas, maiores e capazes, têm à disposição camisinha, pílula, diafragma, DIU, aplicações de anticoncepcionais... Consulte o seu ginecologista, particular, convênio ou SUS, ele te dará todas elas. Não consultou? Não se protegeu? Concebeu?! Ah, ele é casado? Ah, você não tem dinheiro? Ah, seus pais vão te matar? Ah, a vizinha vai comentar? Minha filha, o problema é seu. Você não é traficante de drogas nem assaltante de banco, mas, tanto quanto eles, você realizou um ato voluntário, dele sobrevieram conseqüências que você não queria e você está tentando se livrar delas. Mas nem a você e nem a eles é dado fugir das responsabilidades de ser um adulto inconseqüente.