sábado, 28 de junho de 2014

Um esporte honrado

As equipes entram juntas, mas não se cumprimentam. Cantam seus hinos com paixão, quase raiva. O jogo é de extremo contato físico, mas raramente desleal. Quando o é, a retribuição é certa e imediata e a resolução da arbitragem, segura e respeitada. Os atletas tentam esconder as suas eventuais, mas não simulam ter sofrido infrações e nem contusões para induzir advertências ou expulsões de adversários. Ao final do jogo, os atletas, enfim, se cumprimentam, até se confraternizam. Não raro vão encher a cara de cerveja juntos no mesmo botequim.

Obviamente, não estou falando de futebol, não o association, pelo menos. Estou falando de rugby.

Lances de pontuação são sujeitos a revisão por vídeo a critério do árbitro. O relógio pode ser parado caso haja alguma interrupção extraordinária da fluência do jogo, normalmente quando o árbitro conferencia com os capitães das equipes, que, aliás, são os únicos jogadores que podem, de direito e de fato, dirigir-lhe a palavra. Atletas contundidos, a não ser quando a contusão seja tão séria quanto uma perda de consciência ou fratura, não determinam parada do jogo ou do relógio, pois os atendentes podem ingressar no campo com o jogo rolando. Assim, quando se entra no último minuto de qualquer tempo, o jogo continua rolando até que a bola saia de campo ou a equipe que esteja com a posse de bola dê ensejo a alguma parada no jogo, como cometer uma infração - se quem tem a posse de bola sofre a infração, a falta é cobrada e o jogo continua até quando pare de qualquer outra forma.

Não percebo empecilhos à adoção imediata desse critério de contagem de tempo e dos procedimentos de atendimento de jogadores não seriamente contundidos - o que corresponde a quase todas as ocorrências de contusão simulada ou real - pelo futebol. E seria, ainda, extremamente salutar, pois virtualmente acabaria com o nefasto instituto da "cera" e tornariam desnecessários os acréscimos ao tempo regulamentar, que pseudocompensam as paradas de jogo.

Quanto à revisão de, ao menos, lances de pontuação, não há leitura absolutória possível da insistência em não se a empregar, sobretudo com recursos tecnológicos disponíveis há pelo menos trinta anos que reduziriam a zero o índice de erro na marcação de impedimentos e de bola cruzando ou não a linha do gol. Somente depois da vergonha indisfarçável de em plenas quartas-de-final de Copa do Mundo entre ninguém menos que Alemanha e Inglaterra o mundo inteiro, exceto o trio de arbitragem, ter visto uma bola entrar mais de meio metro no gol e o tento não ter sido marcado que se cogitou de autorizar o que eu chamo de versão beta de goal line technology no corrente Mundial. Independentemente disso, soluções tecnológicas simples que recomporiam a lisura do espetáculo do futebol teimam em não ser adotadas, e não me parece nenhuma coincidência o fato de que se o fossem, seria praticamente impossível a manipulação de resultados por intermédio da arbitragem.

Dentro de campo, como já assinalado, os atletas não dão muito melhor exemplo. Esse ritual bizarro de efusivos cumprimentos e confraternizações ensaiadas antes seguido de atitudes antidesportivas institucionalizadas durante o jogo somente pode ser caracterizado como odiosa hipocrisia. E tampouco há outra forma de denominar as irritantes práticas de "cavar" falta, simular contusões e agressões para forçar advertências ou expulsões de adversários e/ou induzir uma parada de jogo para atendimento médico para interromper um contra-ataque, em nome do fair play.

É evidente que todo esporte e mesmo a vida, de que o esporte é uma imitação, tem uma carga de malandragem. Essa malandragem pode ser boa ou ruim, ou ao menos não imoral ou ruim. A modalidade mais branda corresponde a não produzir provas contra si mesmo, ou seja, não facilitar a vida da arbitragem quando se está cometendo uma infração. É função da arbitragem detectar ilegalidades praticadas pelos jogadores, não deles de reportá-las à arbitragem. Exemplifico com o clássico passo à frente do Nilton Santos após cometer pênalti em jogo contra a Espanha na Copa do Mundo de 1962, o que pelo menos plantou dúvida na cabeça do árbitro e a falta foi marcada, assim, fora da área. Mas não há nada de positivo na artimanha de induzir a arbitragem no erro de marcar contra um adversário uma infração ou agressão que ele não cometeu e assim perceber uma efetiva vantagem indevida.

Tanto no futebol como no rugby há inscrita na lei a prerrogativa e obrigação do árbitro de punir o jogador que pratica conduta antidesportiva. Porém, o futebol simplesmente não tem essa cultura e essas atitudes não são punidas de forma sistemática e decisiva pela arbitragem. E, em outro fenômeno que credito à onda do politicamente correto, as ridículas confraternizações prévias entre os futebolistas são vistas como bonitinhas.

Por outro lado, não há absolutamente nada de bonitinho na haka neozelandesa. Ela é um poderoso e declarado instrumento de intimidação. Mas uma vez que começa o jogo, nem os All Blacks nem qualquer rugbier que se preze joga de forma desleal, embora joguem duríssimo. Alguns exageros e liberdades indecentes, é bom que se diga, às vezes ocorrem, como no recente caso de um sonoro murro desferido por um jogador em um adversário na semifinal da Premiership inglesa. O agressor foi imediatamente expulso e, no dia seguinte, se desculpou com o agredido, que aceitou o pedido, desejou boa sorte ao algoz na subsequente final do campeonato e, por último, ouviu deste "I owe you a pint".

O futebol tem muito o que aprender com o rugby. Sobretudo em matéria de cavalheirismo e ética.

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