segunda-feira, 3 de dezembro de 2012

Morte. A figura do Ceifeiro Implacável. Fogo, fornos de cremação. Cadáveres. E a Velha.

Voltando para casa do trabalho em um desses dias, tocou o meu telefone celular. Era a minha mãe. Entre outras coisas, contou que um primo dela havia morrido e ela estava se encaminhado para o velório com um dos meus tios.

A família da minha mãe é bem numerosa. Dentro de casa, não tanto, ela tem uma irmã, a primogênita dos meus avós, um irmão mais velho e um mais novo. Já meu avô tinha doze irmãos - DOZE! - e minha avó, onze. Meu avô era de São Vicente, filho de uma local com um português. Nascido no começo do século passado, ele fez o que era então a longa viagem serra acima cedo na vida para exercer a profissão de açougueiro. Talvez por isso e pelo fato do meu avô ter morrido jovem pouco ouço dizer desse ramo da família, pois minha mãe na infância e na adolescência teve pouco contato com esses tios e primos, que aparentemente ficaram adstritos ao litoral. O pouco que sei é que o meu avô e todos - TODOS! - os seus irmãos eram diabéticos e as respectivas causas-mortis de todos foram relacionadas à doença. O meu avô inclusive: teve primeiro um acidente vascular cerebral que o quedou inválido e a esse título aposentado precocemente e, pouco tempo depois, foi fulminado por um infarto, quando ainda estava na casa dos quarenta e minha mãe tinha somente nove anos.

Essas informações evidenciar-se-ão relevantes mais adiante, tanto quanto as concernentes à minha avó.

Tampouco tive a oportunidade de conhecê-la, que era cardíaca e morreu doze anos antes do meu nascimento e mesmo dois anos antes do nascimento do meu irmão mais velho. Segundo consta, ela sofria de doença cardíaca crônica. E, tendo criado praticamente sozinha sobretudo os filhos mais novos e os visto todos adultos, proporcionou a eles maior contato com os tios e primos do seu próprio tronco, estes quase todos radicados no ABC paulista. Assim, que alguém faça a conta, mas se cada tio da minha mãe teve em média os mesmos quatro filhos que a minha avó, veja lá a quantidade de gente que integra a terceira geração dos meus bisavós. E ainda se trata de uma família italiana, pois meus bisavós imigraram com suas respectivas famílias, oriundas da mesma região italiana do Vêneto, quando ainda eram crianças. Católicos devotos e vivendo numa época que precede a televisão, não é de se admirar que tenham tido tantos filhos, nem que tenham fomentado a estrita convivência entre eles e seus próprios filhos.

Entro no campo das suposições informadas agora, pois, repito, não conheci minha avó, mas muito ouvi dizer dela. Filha de imigrantes religiosos e pobres, teve pouquíssima educação formal e conversava com os pais e irmãos no dialeto do Vêneto. Por isso que apesar de brasileira nata, minha avó falava português com um forte sotaque. Provavelmente, também, teve uma criação extremamente rígida, por meio da qual deve ter recebido expressas instruções para crescer, casar, se manter casada e se multiplicar. Tampouco existia televisão no Brasil quando a prole dos meus avós foi concebida, do que eu deduzo que eles praticaram o pecado capital da contracepção ainda que eventual, pois tiveram "só" quatro filhos. Seja como for, minha avó devia ser uma senhora completamente ignorante, imbuída de pitorescos preconceitos, sobretudo contra comunistas. Se há uma vida após a morte, suspeito e rogo que ela deve ter gostado do meu último post.

A rica caricatura que é a minha mãe e que eu passarei a explorar literariamente aqui neste espaço certamente decorre em grande medida de ela ter tido a própria mãe como vetor quase exclusivo de criação. Meu tio mais velho, então, é pior ainda.

Diante da notícia, perguntei primeiro à minha mãe de quem que esse primo era filho entre os numerosos tios dela. Era filho do tio caçula, que foi o único irmão da minha avó que eu conheci. Quando perguntei a idade dele, aí me assustei, pois o sujeito era mais novo que a minha própria mãe. Não espantosamente, ele era também cardíaco e, mais grave que isso, diabético, além de obeso mórbido. Digo mais grave porque a diabetes é a doença que afligiu impiedosamente o ramo paterno da família da minha mãe, mas não tanto o materno. E minha mãe é diabética. Que diabos, já cheguei à conclusão e praguejei à minha mãe em pleno trânsito, é quase uma certeza matemática, então, que eu vá desenvolver a doença.

Então, o bate papo ficou mais divertido, porque minha mãe passou a falar dos arranjos que fazia para comparecer ao velório junto com o meu tio caçula.

?

Minha mãe adora um velório. É horrível falar um negócio desses, mas é verdade. Ela desenvolveu esse "gosto" na época em que a grande maioria dos tios e primos dela já haviam todos se casado. Chegava, portanto, aquela fase da vida em que o único ensejo que se tem para rever os parentes minimamente distantes são os enterros. E, sem inobservar a dor dos diretamente envolvidos com a perda, sobretudo quando morriam de velhice ou doenças prolongadas, minha mãe e minha tia em especial se divertiam nessas ocasiões. Tenho certeza de que contam e ouvem piadas nesses enterros e que literalmente gargalham. Mas, pior que isso, ela desenvolveu um procedimento fúnebre que eu nunca vi tão automatizado em mais ninguém, sem falar na naturalidade com a qual ela lida com cadáveres.

Isso não significa que a conduta dela nessas ocasiões esteja entre as dez mais recomendáveis. Eu ODEIO ir com a minha mãe a enterros, pois sempre a vergonha que passo me torna quase tão morto quanto o próprio morto. Por regra, a Velha ingressa no recinto de cara fechada, cumprimenta os familiares mais próximos efusivamente e perde especial tempo consolando a viúva. Faz cafuné, diz palavras suaves, dá beijo na testa e invoca a Providência. Depois, se aprochega do defunto, fita o rosto da carcaça e segura suas mãos por aproximadamente cinco minutos. Em seguida, ajeita ou as flores no caixão ou a redinha que cobre os restos humanos ou ambas e enfim vai cumprimentar os demais enlutados. Esse procedimento é executado de forma indistinta e idêntica, conheça a minha mãe o morto e seus familiares ou jamais tenha visto um ou os outros mais vivo ou mais gordos antes.

Isso dura mais ou menos uns quinze minutos, que para mim parecem uns quinze dias, ao longo dos quais eu fico me perguntando "o que diabo eu estou fazendo aqui?". Normalmente, após esse tour de force, a Velha se volta para mim e caminha em minha direção, quando eu tenho tempo para respirar fundo antes de ouvir uma de duas coisas: 1) (baixinho, sussurando no meu ouvido) "Ele(a) está horrível, não é? Teve uma doença forte, está com uma expressão de dor!", comentário eventualmente repetido para algum outro presente ao féretro com quem minha mãe tenha mais intimidade; ou 2) (em voz normal) "Olha que bonito(a), está com uma expressão de paz, parece que está dormindo!", comentário este repetido para TODOS os demais presentes ao féretro.

A primeira vez em que eu documentei esse comportamento da minha mãe foi quando faleceu um então chefe meu, que já tinha alguma idade, mas morreu de forma absolutamente inesperada. Eu não conhecia um membro sequer da família dele, que estava extremamente abalada. Não me atrevi a chegar perto deles. Minha mãe, apesar de ter sido contemporânea do morto na mesma faculdade, não o conhecia e tampouco à família. Eu observei com horror ela executando esses primeiros passos do velório. Quando ela veio em minha direção, perguntei baixinho "Mãe, o que DIABO você está fazendo?!" e ela falou não muito alto, mas alto o suficiente para quem estava perto ouvir: "Daniel, quer dizer que VOCÊ NÃO FALOU COM A FAMÍLIA DO MORTO?! VÁ LÁ FALAR COM A FAMÍLIA DO MORTO!"...

Voltando ao velório do primo dela, receoso de ser escalado para ir junto, confirmei que ela levaria meu tio a tiracolo. Ela disse que sim e, "a propósito", reportou estar revirando as coisas dela para uma reforma que fará na casa dela e assim encontrou uns documentos de "vital" importância para ela. Melhor retratar o que se sucedeu reproduzindo, tão fielmente quanto possível, o diálogo que se seguiu:

- Então, encontrei aqui uns formulários do Serviço Funerário do Município de São Paulo!
- Ahn.
- Vocês (referindo-se à prole dela) já estão carecas de saber, mas eu já vou deixar tudo preenchido para não ter problema depois, né?!
- Como é que é, Mãe?
- Eu vou ser cremada. Eu quero ser cremada, não é, Daniel, e é bom que já esteja tudo pronto para vocês não se confundirem depois.
- Cremada, é?
- É.
- Bom, Mamãe, em primeiro lugar, não será VOCÊ que será cremada, será o seu cadáver. Em segundo lugar, pessoalmente, eu tenho me posicionado, no campo metafísico, de forma duvidosa, ou seja, não sou cético nem crente, eu não tenho opinião formada sobre a vida após a morte, eu estou respeitosamente em dúvida quanto à sua existência.
- Humpf! (Resmungo de uma católica que, fora o fato de ser divorciada há mais de dez anos, é praticante e observante)
- Portanto, eu acredito que o morto quando está morto, morto está. Logo, ele não quer nem deixa de querer lhufas e passa a ser problema exclusivo daqueles que a lei indica que são responsáveis pela destinação rápida e sanitária dos seus restos, que, assim, devem fazê-lo como bem entenderem. Não vejo muito sentido em repousar a carcaça dessa ou daquela forma só porque o seu animador em vida assim estabeleceu.
- HUMPF!
- Porém, repetindo que estou em dúvida, eu não estou disposto a correr riscos. Que riscos são esses? De ser o primeiro ser humano vivo a ser espancado por um espírito desferindo seu castigo do Além. Logo, Mamãe, pode ficar tranquila, no que depender de mim, eu cremarei o seu cadáver de estrito acordo com as suas instruções e formulários.
- Não, queridinho, te espancar eu não te espancaria, mas é bom mesmo que você me obedeça.
- Pois é. Seja qual for a reprimenda, vinda do Além ela certamente não será agradável.
- Tudo bem, tudo bem. Mas eu vou deixar que você e os seus irmãos façam com as cinzas aquilo que melhor lhes aprouver.
- Ótimo. Na MINHA casa é que não vão ficar. Se o seu irmão mais velho ainda for vivo, eu vou deixar na casa dele, porque ele gosta dessas coisas.
- Ai, ai. Tá bom, Daniel, deixa eu ir para o enterro.
- Ide, Mamãe.

Ainda preciso falar para o meu tio separar uma prateleira na casa dele para essa ocasião. Ele vai contar piada no enterro dela, mesmo.