quarta-feira, 30 de novembro de 2011

Ele

Vertendo para temas mais amenos, segue uma crônica que escrevi num raro momento de tempo livre tempos atrás.

Entrando no carro após um extenuante dia de trabalho, pensando em quão atribulado estava, ocorreu-me que o Brasil ainda é uma sociedade consideravelmente machista. E homofóbica. Eu explico.

Muito da cultura de um determinado grupo de pessoas, de uma comunidade ou mesmo de um país pode ser percebido pelas gírias utilizadas por eles. E então lembro que em qualquer papo normal tupiniquim, se alguém de repente solta que seu chefe está introduzindo à força uma série de objetos em seu mais notório e nauseabundo orifício, os interlocutores nem por um segundo interpretarão que aquele a quem o devassado se reporta está efetivamente empreendendo uma agressão sexual ao seu subordinado. A sodomia involuntária praticada pelo superior hierárquico simboliza, entre nós, brasileiros, uma extraordinária carga de trabalho. Ao leitor certamente ocorrerá uma série de expressões, trocadilhos, interjeições diferentes para ilustrar a máxima, sempre ressaltando o caráter não consentido do afrouxamento do mais festejado esfíncter do nobre trabalhador. Isso demonstra que trabalho duro é popularmente visto como um estorvo e que pior humilhação não há do que de uma forma ou de outra permitir que qualquer coisa, um espécime de genitália masculina ou um brinquedo, um utensílio de faxina, leguminosas, mobília ou até galináceos, seja estufada reto acima.

Pois é. A esta altura, eu já estava a caminho de casa, uma chuva torrencial, um trânsito dos infernos, e de algum modo tudo isso auxiliava minha mente a seguir neste importante raciocínio. Enfim, dada toda a conotação sexual, pensei por que cargas d'água quando se descreve que um homem praticou conjunção carnal, diz-se que ele tomou fulana de tal como refeição e quando esta felizarda é que é o objeto da ação, que ela se desfez de sua perseguida cavidade? Isto não faz sentido nenhum! Nenhuma das duas expressões, na verdade, mas a última me parece mais estapafúrdia. Como raios uma normal função fisiológica que não envolve disposição de bem algum veio a ser descrita como uma alienação definitiva da aconchegante caverna feminina, puerilmente denominada por uma simpática ave verde? Um bom amigo resolveu passar a falar em emprestar a dita cuja, anedota que até prefiro, embora nunca tivesse visualizado o ato sexual como algo parecido a um mútuo bancário. Não obstante, o comodato, que reclama ao menos uma expectativa de devolução, soa menos absurdo.

Intrigante. Tanto quanto que a mesma expressão designa a conjunção carnal do ponto de vista feminino e o ato homossexual masculino, mas agora em atenção a ele, o canal naturalmente desenhado para movimentos em vetor inverso tão agredido quando do crescimento da demanda laboral. E esta é realmente uma bela duma confusão. Se os homossexuais masculinos só querem, só pensam em entregar com animus definitivo o encouraçado de descarga, como é que eles conseguem fazer sexo? Como minha curiosidade não chega a tanto, detive respeitosamente minha imaginação, mas consegui concluir que essas gírias indicam que tanto a mulher quanto os homossexuais masculinos são sexualmente mal falados.

As mulheres DÃO. Os homossexuais DÃO. Quem come parece que tomou vantagem de um ou da outra. Os atos não são caracterizados como bilaterais. A mulher e o homossexual não passam de otários e os únicos que aproveitam o ato sexual são os que comem. E o melhor de todos é o chefe, que não só come como enfia um monte de coisa no receptáculo alheio. O cool é ser homem e chefe, o resto, literalmente ou não, só se fode.

E eu já vou sendo traído pela minha própria propensão a essas gírias... Mas a minha conclusão permanece. A hierarquia sexual, ou melhor, a cadeia alimentar brasileira começa com o subordinado – que leva de qualquer jeito, quer queira quer não, a qualquer hora – e prossegue com o homossexual, a mulher, o homem e, no topo o chefe. Gostaria que um perturbado antropólogo desenvolvesse uma tese para explicar tudo isso, porque uma explicação certamente há, mas eu não tenho formação para formulá-la.

Até lá, é melhor eu chegar rápido em casa, senão minha mulher vai comer meu cu.

terça-feira, 29 de novembro de 2011

O conteúdo de minha fossa sanitária

Ontem, minha esposa voltou do trabalho e contou que uma colega havia recentemente adotado uma cadela. Ela já estava procurando um cachorro nos diversos sites das diversas ONGs de protetores de animais quando viu um anúncio que a interessou. Era uma cachorra bonita, aparentemente mista de Labrador, cujos donos diziam que iam se mudar e que não poderiam mais ficar com ela, ou coisa assim.

Como comumente acontece com quem gosta de animais, foi uma clássica história de amor à primeira vista, a colega da minha esposa foi conhecer a cachorra e aflorou-se um carinho mútuo entre as duas. Não pensou duas vezes e a trouxe para casa. A cachorra está se adaptando muito bem, mas a adotante percebeu que ela era um pouco arredia ao contato com outras pessoas. Eis que, ao levá-la ao veterinário para a primeira consulta, foram constatados sinais de abuso físico e, pior, a cachorra esteve prenha e havia sido injetada nela uma substância abortiva, letal para os fetos. De fato, os cachorrinhos em seu útero estavam mortos e uma cirurgia de emergência salvou também a cachorra, que estava prestes a ter o mesmo destino de sua cria.

Nós mesmos temos duas cachorras. A primeira havia sido abandonada por seus antigos donos na rua muito provavelmente quando eles se deram conta de que a cachorra estava prenha. Ora, se deixavam a cachorra solta na rua, era evidente que ela teria contato com outros cachorros que buscariam cruzar com ela quando ela tivesse um cio. Neste caso, deveriam tê-la castrado. De toda a forma, ela foi encontrada por uma protetora de animais num bueiro dando de alimentar à sua recém-parida cria de dez filhotes. Nove sobreviveram. A protetora deu abrigo à mãe e aos filhotes e foi doando os filhotes. Quando a conhecemos, haviam sobrado apenas duas fêmeas de toda a cria, já grandes, com seis meses. Vira-latonas, mãe e filhas. Fomos lá supostamente para pegar uma das filhotes, mas gostamos muito da mãe, embora já fosse adulta. Nós a levamos no dia seguinte e é o melhor cachorro que tanto eu quanto minha esposa já tivemos. Obediente, esperta, amorosa e tranquila, e ainda dá sinal sempre que alguém estranho chega perto de casa. A outra cachorra nós encontramos abandonada na rua ainda filhote. Esta é uma cachorra mais clássica, chegou em casa e fez buracos no jardim, come pedra, come pano, mata ratos-do-mato, enfim, uma doida varrida. Mas é outro animal muito carinhoso que não merecia e certamente não deu motivo nenhum para ser abandonada ao lado de uma pista de rodagem em altas velocidades para morrer do jeito que foi.

E então eu me ponho a pensar: que espécie de ser humano comete uma atrocidade dessas contra um animal indefeso? Sim, indefeso, pois os mecanismos de defesa de todos os seres vivos que existem na face da Terra que não o humano pressupõem ataques de um potencial predador ou concorrente em relação a suprimento de comida, não à mente distorcida e malévola de um homem portador de absoluto livre arbítrio. Ou seja, o animal abusado, em primeiro lugar, não tem e nem pode vir a ter consciência do porquê de estar sendo maltratado. Mais, a cadela prenha, ao contrário da filha adolescente rebelde e desobediente que engravida do namoradinho, não faz a menor ideia do que seja planejamento familiar e nem saiu escondida de seus donos para se divertir. Ela simplesmente deu vazão a um instinto de sobrevivência e perpetuação da espécie dela, de forma totalmente involuntária. E já que falamos em vontade consciente e livre arbítrio, chegamos à óbvia conclusão de que o cachorro não tem nenhuma das duas. Os animais não têm maldade; se fazem mal a algo ou a alguém, o fazem única e exclusivamente para se defender de uma situação que o intelecto rudimentar deles interpreta como sendo de perigo, exista esse perigo ou não. Portanto, não existe nenhuma justificativa nem explicação minimamente plausível para quem comete qualquer tipo de abuso com animal. Pode ser um abuso efetivo ou abandono. Os animais domésticos evoluíram para confiar e precisar da presença humana, então eles buscam, sim, apoio e amparo nas pessoas que os guarnecem e não entendem o motivo quando são abandonados. O sofrimento que eles devem experimentar quando fazem isso com eles deve ser indescritível, pois.

O animal é inconveniente na sua casa? Deveria ter pensado melhor antes de trazê-lo para dentro. Ele não pediu para ser adotado por você tanto quanto nem eu nem você pedimos aos nossos respectivos pais para nascer. O cachorro te mordeu ou o gato te arranhou? Por algum motivo, os dois se sentiram ameaçados por algo que você fez e nenhum dos dois tem a consciência real ou potencial de entender que você não representava nenhuma ameaça. O cachorro ou o gato não são uma pessoa que quis te ofender e resolveu te agredir. Eles só estavam se defendendo.

Cumpro, afinal, explicar o título desta postagem: ele me vale muitíssimo mais do que a vida dos seres humanos que abusam dos animais.