domingo, 30 de outubro de 2011

Polícia Militar na USP e política antidrogas

Sem considerar o eventual uso de força excessiva pela Polícia Militar, a repressão institucional do uso de maconha foi legítima, não porque seja correto combatê-la, mas simplesmente porque, gostem os defensores da liberação ou não, seu uso hoje, ainda, é crime.

Em princípio, eu defendo a descriminalização de TODAS as drogas. Da aspirina à heroína. Querendo dizer que devem ser revogadas tanto as proibições como os controles de uso de determinadas substâncias. No último caso, a referência é aos remédios tarja preta e mesmo os de tarja vermelha que não possam ser vendidos sem receita médica. Devo admitir que não possuo o gabarito técnico clínico nem de criminologia para afirmar a efetividade desta tese libertária, mas entendo que não é lícito ao governo determinar o que cada cidadão deve fazer com sua vida particular. Se o indivíduo quer fumar cinco maços de cigarro por dia, beber um litro de cachaça, tomar pico, cheirar pó, queimar mato e, depois disso tudo, se matar, e fizer tudo isso dentro da casa dele, o problema é única e exclusivamente DELE. Sem dúvida que são atitudes extremamente prejudiciais a quem resolver empreendê-las, mas admitir que o governo pode impedi-las, à revelia do sujeito que quer tomá-las, significa também admitir que o governo pode estabelecer um conceito geral de felicidade e impô-lo a todos os seus súditos. E isso é muito perigoso. Se hoje o governo pode entrar na minha casa e falar que dentro dela, sem incomodar absolutamente ninguém, eu não posso fumar isso, beber aquilo ou cheirar e inejtar aquilo outro, por melhores que possam ser as intenções por trás dessa política, ela pertence à mesma categoria - imposição de um conceito de certo e errado relativo a uma conduta absolutamente privada - que uma norma que determinasse que eu tenho que torcer para o Corinthians, para o São Paulo, ou para o Nacional da Comendador Souza pertenceria. Ninguém tem nada com isso, e o governo, menos ainda. Sem embargo, repito que não sei as implicações clínicas ou criminológicas que essa liberação teria. Mas acho que o consumo de drogas não aumentaria; eu não injeto heroína porque é ilegal, mas porque sei que isso me faria muito mal, seria potencialmente suicídio.

Ainda nesta pauta, dirão os detratores que a liberação das drogas causaria um enorme problema de saúde pública, pois os atendimentos por conta do abuso delas aumentaria. Pois eu reafirmo que o que cada um faz com sua vida é problema exclusivamente seu, mas exclusivamente seu, mesmo: o cidadão teve uma overdose de cocaína? Foi levado às pressas para o hospital público, ficou dias na UTI e teve sua vida salva? Ótimo, então, ele que pague a conta. Nada de SUS para aliviar a bronca dele. Vai pagar os custos de combustível e desgaste da ambulância, a hora trabalhada do atendente da ligação para o 193, do motorista da ambulância, dos paramédicos, dos enfermeiros, os honorários dos médicos que o atenderam e os custos de internação e e de medicação. É alcoólatra e precisa de clínica de reabilitação? Vai sair do bolso dele. O sujeito que reclama a sua liberdade de se drogar não pode pedir o tratamento gratuito das consequências que isso lhe trouxer. Logo, a política antidrogas não é, no frigir dos ovos, uma política de saúde pública, ou pelo menos não precisaria ser.

Porém, voltando ao assunto de face desta crônica, fato é que hoje o uso de maconha e de tantas outras drogas ainda é considerado crime. Uma conduta que talvez - e eu defendo isso, como exposto acima - não deveria ser catalogada como crime, mas é. Assim, reprimi-la não é uma faculdade, mas um dever do Estado, representado, no recente episódio da USP, pela Polícia Militar.

Tudo o que eu disse até agora parece uma contradição em termos. Se não é adequado ao Estado criminalizar o uso de drogas, porque a polícia deveria reprimir este crime, se ele ainda está vigente nos livros da lei? Por que não simplesmente esquecê-lo enquanto crime, que é o que parece que essa moçada da USP defende? E a resposta - esta eu tenho formação e gabarito técnico para fornecer - é bastante simples: ainda que o Direito seja uma ciência humana, o ramo do direito penal, especificamente falando a tipificação penal, é cartesiano, e tem que ser, pois o cidadão comum tem que poder abrir o Código Penal, ler lá a perfeita descrição de uma conduta e ser capaz de entender que se ele a praticar, terá cometido um crime e responderá por isso. O critério que define algo como sendo um crime é, portanto, absolutamente objetivo, não demanda interpretação. Assim, pretender que o Estado feche os olhos a um determinado crime significa impor um conceito subjetivo para aplicar uma lei objetiva, e isso é MUITO perigoso! Eu espero que para o leitor isso já esteja parecendo óbvio, pois subjetivizar a aplicação da lei significa admitir que não o Estado enquanto instituição, mas sim que quem está ali momentaneamente exercendo as funções do Estado é que tem a prerrogativa de determinar o que será investigado e o que não será, quem será processado e quem não será. E a lei terá se tornado letra morta. É importante perceber que a lei é uma proteção do cidadão perante o Estado, bem como contra os criminosos responsáveis por crimes que efetivamente lesam terceiros, cidadãos de bem. Ora, se o Estado somente perseguir os crimes que quiser, que garantia se terá que amanhã os agentes estatais não resolverão internamente que homicídio é um crime "bunda-mole" e, então, meu vizinho maluco, que não vai com a minha cara, não vai entrar na minha casa e cortar minha garganta?

Portanto, o discurso desses estudantes da USP de que a Polícia Militar não tem nada que punir o uso de maconha na USP ou em qualquer lugar é ou ingênuo ou mal intencionado. Será ingênuo se eles de fato acham que deixar de reprimir um crime inutilmente definido como crime contribui para a melhoria da segurança pública e da autonomia universitária, o que quer que ela seja, tão cara para eles. Será mal intencionado se eles simplesmente querem praticar o crime de opção deles em paz. Dizer "eu quero ter o direito de fumar maconha" é uma reivindicação como outra qualquer, legitimada pela liberdade de expressão. Dizer "eu TENHO o direito de usar maconha" é uma mentira. Independentemente dos argumentos, usar maconha ainda é crime e, enquanto for, o Estado tem que reprimir, não porque se atingirá um nobre e prático objetivo ao fazê-lo, mas apenas porque é crime e todo crime tem que ser reprimido, ou então se permitirá que o fulaninho que estiver ali brandindo o porrete estatal reprima uns crimes e uns supostos criminosos e deixe algumas condutas e praticante delas a que for simpático por qualquer motivo fiquem livres. E isso é inadmissível num Estado que se pretenda democrático.

domingo, 2 de outubro de 2011

Boa malandragem x má malandragem

Minha esposa está ao meu lado se entretendo com um jogo de futebol americano. Ela teve a atenção chamada para o esporte inicialmente pela beleza dos uniformes e passou a apreciar o jogo em si. Eu acho o esporte interessante e entendo de sua mecânica e regras mais do que o acompanho, mas, pensando nas suas origens e fazendo um paralelo com o futebol association, que é o nome oficial do esporte mais popular do mundo e objeto da demência da maior parte dos brasileiros, lembrei-me do rugby, do seu efetivo apego pelo fair play e pela absoluta falta de ética que tem caracterizado o futebol, sobretudo no Brasil, na minha opinião.

O futebol americano é uma adaptação declarada do rugby e o rugby, uma dissidência do futebol. Naquela época, o jogo ainda não havia sido codificado na Inglaterra e cada grupamento que o praticava - fosse uma escola ou universidade - tinha suas próprias regras e, se houvesse um jogo entre uma escola e outra, combinava-se antes de maneira informal quais seriam as regras aplicadas. Com o tempo, dois tipos de futebol começaram a predominar, um deles o association, o outro o Rugby Football, pois fora inicialmente praticado numa escola secundária que existe até hoje chamada Rugby. A diferença mais notável entre as duas formas era que no futebol de Rugby, a bola era carregada pelos jogadores com as mãos e não havia goleiro. Ao contrário, o time que pretendesse marcar um ponto ou goal deveria carregar a bola até a end zone adversária e ali apoiar a bola no chão, ground the ball. Do ponto onde a bola tinha sido apoiada, criava-se uma linha imaginária paralela aos lados do campo ao longo da qual o time que a havia apoiado poderia colocá-la para então tentar um tiro livre ao gol, ou try at goal. Daí a nomenclatura que até hoje perdura no rugby do principal método de pontuação, que o try, mediante o apoio da bola na end zone adversária. Contudo, naquela época, o try não dava ponto nenhum e a pontuação no rugby era idêntica ao futebol, ou seja, um ponto para cada bola que fosse chutada para dentro do gol.

Quando se decidiu codificar o jogo de futebol, a principal divergência entre os defensores do futebol association e do rugby não era quanto a carregar ou não a bola com as mãos, mas sim a uma manobra de defesa e recuperação de bola chamada então de hacking, algo semelhante ao carrinho do futebol atual. Os defensores do futebol queriam banir o hacking e os do rugby, não. Ironicamente, no rugby de hoje é terminantemente proibido derrubar o adversário que carrega a bola com os pés, enquanto que a mesma jogada é permitida no futebol, desde que se atinja a bola e não o jogador.

Enfim, feito este que deveria ser um breve, mas não foi assim tão breve, intróito, fica fácil de entender que os estadunidenses adaptaram o rugby diretamente para criar o seu código de futebol, o que muito alegra a minha esposa neste exato momento.

Mas o que eu realmente queria colocar aqui é a valorização no futebol especificamente brasileiro de uma forma de malandragem que é absolutamente antiética e incompatível com o fair play, hoje presente neste jogo somente no hipócrita ato de chutar a bola pra fora quando um jogador - em 99% dos casos - está simulando uma contusão para impedir um contra-ataque adversário. A diferença entre essa que eu chamo de má e a boa malandragem é tênue, mas existe.

O rugby prega e pratica o fair play, até porque, dado o nível de contato físico que existe no jogo, ele certamente descambaria para a barbárie se assim não fosse. Isso não quer dizer que não haja malandragem, mas ela se traduz em simplesmente não facilitar a vida da arbitragem quando ela deve marcar uma infração contra o infrator. Por exemplo: diz a regra do rugby que o jogador que carrega a bola, quando tackleado, ou seja, agarrado por um adversário abaixo do pescoço e levado ao chão com a bola, deve soltar a bola o quanto antes. A regra fala isso expressamente, upon being tackled, ball carrier must release the ball at once. Ocorre que cabe um certo subjetivismo nesse "o quanto antes" e, se o jogador tiver sido tackleado no meio de vários jogadores adversários e sem apoio dos seus companheiros, ele tenderá a segurar a bola até que esse apoio chegue. Ele corre, sim, o risco de ser penalizado por não soltar a bola, mas ele testará o limite do subjetivismo do árbitro quanto ao "o quanto antes" tanto quanto possível. Na minha opinião, isso não é uma tentativa aberta de ludibriar a arbitragem, mas sim de se utilizar do subjetivismo que a norma posta sempre conterá a seu favor. Marcar a infração é um dever do árbitro, não do infrator. No futebol association, o exemplo disso que mais me ocorre é aquela hoje famosa imagem do Nílton Santos dando um passo para fora da área depois de ter cometido o que deveria ter sido assinalado como um pênalti num jogo contra a Espanha na Copa de 1962. Ele derrubou um atacante espanhol um passo dentro da grande área e o juiz apitou, mas antes que ele assinalasse se tinha sido falta fora da área ou pênalti, Nílton Santos marotamente deu um passo para fora da área e o juiz marcou a falta.

Tecla FF para o futebol de hoje, especialmente o brasileiro. Os jogadores parecem mais preocupados em ludibriar a arbitragem do que em jogar bola. E não é esse que eu acabei de descrever que é a malandragem praticada, mas sim aquela de simular uma falta que não existiu, simular uma contusão que não ocorreu, não para que a arbitragem não marque uma infração contra o malandro, mas sim para marcar algo indevido a favor dele. Isso é o fim da picada. É desleal. Não deveria fazer parte da cultura do jogo, mas acabou assim se tornando.

Por essas e outras razões que tenho acompanhado cada vez menos futebol, por mais que goste do esporte. E, quando paro para ver um jogo, raramente é do futebol brasileiro.